Reconhecer, identificar, valorizar e recuperar a flora espontânea.
Em março deste ano, recebi uma irrecusável proposta/convite da designer Maria Ruivo e do fotógrafo Alexandre Delmar, criadores do projeto A Recoletora, para integrar a equipa como criadora de conteúdos e de passeios guiados pela flora espontânea dos baldios urbanos do Porto e de Matosinhos. Esta ideia nasceu na cabeça e no coração destas duas simpáticas criaturas, no âmbito da Porto Design Biennale 2021. O projeto tem crescido a bom ritmo e mais não conto pois vou guardar os detalhes para a crónica de dezembro, que será toda ela dedicada a projetos de sustentabilidade, e este é sem dúvida um deles.
Este foi um dos projetos selecionados e, portanto, foram dinamizados em julho alguns eventos no contexto da Biennale, entre eles workshops de culinária com ervas silvestres e passeios de reconhecimento das mesmas.
Estava calor e a adesão foi muito boa e com lotação sempre esgotada. Passeámos em dois espaços previamente mapeados no Porto: ramal da Alfândega, nas Fontainhas, e Monte da Ervilha, em Aldoar. Estes eventos tiveram dois momentos: de manhã, um passeio de reconhecimento e valorização das espécies silvestres que nos rodeiam e, de tarde, uma degustação e showcooking.
A Cuka Linck cozinhou, explicou, demonstrou, ‘piclou’ (fez picles) e nós deliciámo-nos com o resultado: combinações de urtigas com mel, queijo coalhado com urtiga, picles de caule de funcho e de alho-bravo, pesto de perrexil-do-mar, café de bolota, refresco de flor de sabugueiro. É importante frisar que a colheita da matéria-prima para a demonstração culinária – urtigas, alho-bravo, funcho-marítimo, capuchinhas e outras – foi feita no Cantinho das aromáticas em Gaia, local livre de contaminação automobilística, livre também de pesticidas e herbicidas ou de dejetos animais ou humanos. Importante também ter sempre em conta que as espécies em questão não são espécies protegidas ou venenosas. E é para isso mesmo que servem os passeios que oriento, ajudar a identificar as espécies comestíveis e medicinais e os locais de colheita segura e autorizada, pois, dentro dos perímetros de parques naturais, não é permitida a recolha de plantas, nem de urtigas, nem tanchagens, nem todas aquelas a que chamam “daninhas” e que tantas vezes são vítimas de cortes indiscriminados, em plena floração, em plena época de produção de alimento para os indispensáveis insetos polinizadores como borboletas ou abelhas. Voltando à minha colaboração com A Recoletora, no passado dia 17 de outubro, agendámos mais dois passeios nos mesmos locais onde tínhamos estado em julho, Monte da Ervilha e ramal da Alfândega, Fontainhas. Gosto muito de ambos os locais pela sua destinta geografia.
Fontainhas: Ramal da Alfândega — passeio realizado da parte da manhã
“O antigo ramal da Alfândega, nas Fontainhas, foi um dos primeiros locais mapeados. Esta curta via-férrea, desativada em 1989, era dedicada exclusivamente ao transporte de mercadorias, que chegavam de barco ao porto da Alfândega e eram depois distribuídas para o resto do país a partir da estação de Campanhã. Há muito que os comboios deixaram de passar nestas linhas, mas o trajeto, rasgado por vários túneis, continua bem marcado na paisagem, sempre paralelo ao rio Douro. Assim que fizemos o percurso até ao fim, acompanhados por uma vista desafogada sobre o rio e pela bonita sucessão de pontes, confirmamos que o local era muito variado no que toca à vegetação espontânea comestível (inventariámos cerca de 30 espécies), indo das ervas mais rasteiras a catos e árvores de médio porte”.
Monte da Ervilha, Aldoar
“Este terreno, rodeado por vários prédios habitacionais e localizado mesmo ao lado do estádio do Futebol Clube da Foz, é um dos quatro locais mais densos e ricos em vegetação espontânea comestível mapeados pela Recoletora. Quando acedido pela entrada sul, vindos da Praça do Império, reparamos que o local está ladeado por um conjunto de hortas comunitárias, tirando proveito do ribeiro que o
atravessa e da sombra proporcionada pelo denso arvoredo. A zona é muito fértil e húmida todo o ano, de um verde exuberante, sendo por isso propícia ao aparecimento de espontâneas como o alho-bravo, a silva e o cardo-dos-picos, mas também outras como a urtiga dioica, a capuchinha e o funcho, que surgem em núcleos populacionais de muitos indivíduos.
Este local, hoje um baldio urbano de árvores de grande porte, foi outrora habitado. Acredita-se que a ocupação do Monte da Ervilha remonta à pré-história, pelas ferramentas em pedra encontradas no local. Neste mesmo sítio foi edificado o ‘Espaldão’, uma fortificação militar mandada construir pelo rei D. Miguel I que serviu a Guerra Civil Portuguesa entre 1828-1834, também conhecida como o ‘Forte da Ervilha’. Apesar de muito degradado e de difícil reconhecimento, é um dos poucos vestígios arquitetónicos do Cerco do Porto.” (A Recoletora).
Chovia, aquela chuva miudinha que ia deixando pérolas cintilantes nas folhas do funcho ou gotas dançantes no centro hidrofóbico das enormes folhas de capuchinha. Chovia, mas a chuva não impediu que os nossos 12 participantes em cada um dos passeios se deslumbrassem com tanta história escrita no verde das plantas.
Querem mais, faça sol ou faça chuva. Nós cá estaremos, abrindo caminhos e janelas em todas as estações para o verde que desponta debaixo dos nossos pés.