Revista Jardins

A vinha do enforcado

vinha do enforcado

 

Conheça esta forma tão tradicional de plantar as videiras no norte do País.

 

VERDE… No Minho tudo é… VERDE! Tudo ao nosso redor é… assim! Essa cor intensa e carregada que contrasta com o escarlate dos antigos vinhos tintos aqui produzidos. Verde, tudo ao nosso redor é verde, cor frutada como os frescos vinhos brancos que aqui se produzem. Vinhos milenares, que ao longo dos tempos se foram aprimorando, vinhos vindos das profundezas do passado, dos povos ibéricos que já aqui habitavam muito antes de chegarem os romanos, os grandes apreciadores de vinho, adoradores desse deus que tomba o mais forte dos homens, esse deus que confunde as ideias, o deus Baco!

 

As videiras crescem para o céu

Modo da poda da vinha do enforcado ou também chamado raramente de forcado. In MORAES, M. Rodrigues de, Viticultura Prática Portuguesa, Bibliotheca da Gazeta das Aldeias, Livraria Moreira, Empreza Gazeta das Aldeias, Porto, 1900.

Aqui tudo cresce… Em direção ao céu! Terão aqui os ingleses procurado inspiração para o conto do João e o Pé de Feijão? Mas aqui não são os feijões que crescem em direção ao céu; são as videiras! Precisam de um apoio, precisam de um suporte para chegar ao céu. Apoiam-se nas velhas árvores, choupos, plátanos, castanheiros ou árvores de grande porte e folha caduca para deixar ver os longos troncos e ramos.

Aqui tudo cresce… A vinha enrosca-se nos galhos das árvores, as suas gavinhas em espiral agarram-se como se não houvesse amanhã, fortes, sempre em direção ao céu! Mas também caem, caem penduradas dos extremos dos ramos das árvores velhas, ficam penduradas ao sabor do vento das terras minhotas, fresco e húmido, penduradas, simplesmente penduradas… São as velhas vinhas do enforcado! Aqui tudo cresce… Tal como Judas, que traiu Jesus Cristo por 30 moedas de prata e se enforcou, também aqui os galhos, as chamadas “podas” se enforcam, não por suicídio, mas por o Homem não lhes ter dado outra solução, pendem assim das videiras, ocultos pelas folhas das árvores velhas e pelas parras recortadas de um intenso verde.

 

 

Os tons de outono e a vindima

Ao entrar em setembro, essa cor intensa torna-se matizada pelas parras velhas, já suavemente amarelas, que, com o avançar do tempo se misturam com as vermelhas, e eis que no meio delas surgem os cachos já maduros, os tintos escarlates e os brancos dourados. É a altura de apanhar estes “enforcados”, é altura da vindima!

Aqui tudo cresce… até as escadas! Altas até ao céu, de largas passadas encostadas às vinhas do enforcado. Aqui os homens são aves-do-paraíso, que desafiam as leis da gravidade e tentam cortar os cachos que se escondem na folhagem, que sobem, sobem em direção ao céu! Duro trabalho este, o destas “aves-do-paraíso” sem asas, que se seguram apenas com as mãos calejadas e com os pesados tamancos enganchados nas grandes passadas das altas escadas. Não são aves-do-paraíso? Serão criaturas que andam pelo céu certamente! Fortes, muito fortes, para aguentar o duro trabalho da jorna, para conseguir pegar e virar aquelas escadas, aquelas escadas tão altas em direção ao céu!

 

Trabalhos de inverno

Vem o duro e gelado inverno, a vinha vai perdendo a sua folhagem, despida, nua com o frio a rasar os longos ramos que precisam de serem podados pelas “aves-do-paraíso” para que na primavera voltem ao seu vigor e rebentem com uma força tal que o verde vai aparecendo de dia para dia misturado com as folhas dos choupos e plátanos. Mas a divina planta é atacada pelo Mal, demónios transformados em fungos, como o oídio e o míldio, e insetos, verdadeiros exércitos de Satã, que é preciso travar! Tem de se sulfatar!

 

Vindima nas vinhas do enforcado. Final do século XIX, início do século XX. In Arquivo da Muralha, Guimarães.

 

O verão e a vinha

Longas canas penetram na densa folhagem que entretanto cresceu para proteger as uvas que se desenvolvem lentamente sob o sol que se vai tornando escaldante pelo verão adentro.

É a luz, o calor que as faz amadurecer, ganhar o açúcar que lhes dará o teor de álcool que embriaga os mais incautos e tomba os mais fortes e destemidos, gozando com quem o produz. Como cantava a grande diva Amália Rodrigues com o fado do Senhor Vinho… “Oiça lá, ó senhor vinho, vai-me responder com franqueza porque é que tira toda a firmeza a quem encontra no seu caminho (…) Vossa mercê tem razão e é ingratidão falar mal do vinho. E a provar o que digo vamos, meu amigo a mais um copinho!”

E o ciclo começa de novo, de novo… Vindima, poda e sulfato.

Acho que o exuberante barroco aqui encontrou inspiração! Inspiração nas videiras que crescem, que crescem em direção ao céu… Nas recortadas parras que no outono não são verdes, mas de amarelo-ouro. Nestas “aves-do-paraíso”, na realidade muito diferentes das que se veem representadas nos altares das igrejas, das velhas igrejas revestidas de talha em que as videiras se enroscam em colunas, em direção ao Céu. O altar! Não haveria lugar melhor para colocar esta planta divina, esta criação de Deus cuidada pelo Homem, que nos dá o néctar dos deuses e, desde há dois mil anos para cá, o “sangue” de Cristo!

Junto aos “enforcados” o povo faz a festa ao cantarolar no meio dos campos. Aqui a dor não se sente, a dor é só a do cansaço para subir as longas passadas e a dor das mulheres que carregam os pesados cestos cheios de uvas. A dor só se sente no final do dia, depois de pisadas as uvas. Como que anestesiados, pela noite dentro descansam as “aves-do-paraíso”! E sonham que sobem, que sobem… Em direção ao céu!

 

Leia também “As uvas”

 

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