Revista Jardins

Conheça o jardim de Fernanda Botelho

Para a escrita desta crónica comecei por visitar pastas e pastas de fotos do meu jardim organizadas por meses. Foi uma viagem pelas metamorfoses das plantas e árvores que constantemente me desafiam do outro lado do ecrã do computador, para além da porta de vidro em frente à qual escrevo, me distraio, me disperso, me deslumbro e me inspiro em todas as estações.

Teias de orvalho

Li este ano uma frase de um dos meus escritores favoritos, o Afonso Cruz, “Ando pela rua e ninguém repara no jardim enorme que levo na minha cabeça…”.

É isso que sinto tantas vezes; que tenho jardins a crescer dentro de mim e plantas em vez de pele.

Um jardim para as quatro estações

Vivo os ciclos do jardim sempre com entusiasmo renovado. Na primavera, é o desabrochar misterioso e mágico das primeiras folhas que irrompem delicadas e seguras, teimosas e variadas.

Lúpulo

As primeiras são as folhas da aveleira, depois, vem o vitex, o noveleiro, a figueira, a romãzeira. Nos prunus aparece primeiro a flor e só depois surge a folha, deixando-se permanecer alguns dias ou semanas naquele estado poético e celestial que é uma árvore coberta de flores que se hão de transformar em frutos assim o vento não as faça cair todas ou a geada, ou alguma chuva intensa com granizo fora de época e que cada vez mais nos surpreende com ocorrências irregulares e muitas vezes devastadoras.

É fascinante assistir ao nascimento das primeiras folhas rasgando delicadamente os ramos de aparência seca e estéril. É um excelente exercício de observação visitar esses recém-nascidos todos os dias e registar a sua lenta metamorfose quer em fotos, desenhos ou palavras.

Gavinhas de lúpulo

Algumas maravilhas do meu jardim

Constatei que grande parte das minhas fotos são de gavinhas. Esta matéria vegetal que se lança no espaço à procura de “ombro” amigo onde se enrolar e continuar a crescer em segurança, deslizam no vazio, sem medo e de forma muito criativa. As gavinhas do lúpulo a lembrar serpentes encaminhando-se para o céu, as das capuchinhas enroscam-se em volta de si próprias em espirais ascendentes ou descendentes mas sempre de forma muito artística, as das passifloras são linhas de coser, finos fios avermelhados que rapidamente negoceiam parcerias de forma um pouco forçada com a glicínia ou a figueira ali tão perto e lá vão elas lançadíssimas cobrindo tudo de forma bastante veloz e avassaladora.

Glicínia

Em pouco tempo, flores belíssimas de maracujá pendem da figueira, emaranham-se no arco da glicínia como se fossem uma e a mesma coisa de tal forma que até já houve quem me dissesse: “- Ah, a minha glícinia dá flores muito diferentes…”. Ups, olhe com atenção!

Araçá

Os frutos e aromas do jardim

Como já devem ter percebido, o meu jardim é um pesadelo para qualquer paisagista que aprecie um jardim bem domesticado. O meu é selvático, de aparência caótica mas com uma imensa diversidade de espécies que coabitam e se entendem.

Eu aprecio e mexo de vez em quando para poder entrar nos caminhos e fotografar e comer araçás, ameixas, maçãs, figos, framboesas, tantas este ano, aipo, salsa, coentros, mentas… e agastache (Agastache foeniculum) que tanta alegria me deu no verão passado, um canteiro cheio de borboletas e abelhas, além do aroma das suas folhas de travo anisado com notas de mentol que usei em águas florais e infusões refrescantes e boas para as vias respiratórias, em sobremesas, pratos de peixe, saladas e sopas.

É uma das minhas ervas favoritas que infelizmente este ano não voltou, nem o/a agastache nem a Artemísia annua, que crescia no mesmo canteiro. Talvez mais tarde ou no próximo ano… As sementes ficaram na terra. À espera.

Agastache

A beleza das rosas e das onagras

Daqui de onde me sento vejo as rosas e as onagras (Oenothera biennis), felizes com os nevoeiros matinais. Estas só abrem à noite as suas delicadíssimas e luminosas flores amarelo-limão. No entanto, de manhã, assim que a temperatura começa a subir, elas murcham e são substituídas nessa mesma noite por novas flores e assim sucessivamente. Surgem onde lhes apetece aqui e acolá e eu vou deixando quase sempre as suas raízes profundas. Quando as encontro em vasos, mudo-as para a terra ou ofereço aos amigos.

Onagra

O óleo das suas sementes é muito usado pela indústria farmacêutica por ser um dos grandes reguladores hormonais femininos. As flores são comestíveis assim como as raízes e as folhas tenras, e regularmente visitada por abelhas e abelhões.

Nesta roda das estações, delicio-me com as primeiras pérolas de orvalho suspensas em teias de aranha que começam a surgir assim que o outono se assoma à janela, pintando, tingindo, tricotando buracos nas folhas.

A luz vai mudando, atravessando as manhãs e as tardes em raios oblíquos. É aí que gosto mais de fotografar. Quando em contraluz se manifestam contornos, texturas, transparências, detalhes surpreendentes que a minha objetiva capta e reproduz e a minha alma contempla, interioriza e agradece a velha frase de Cícero.

Fotos: Fernanda Botelho

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