A fruição deste jardim da Quinta da Lua contempla uma conversa, em silêncio, com quem nele percorre e nele se envolve.
Enquanto revejo as imagens deste lugar, esforço-me por não pensar em tanta descrição volátil que o jardim inspira. Perder a sensação é o que me causa este jardim, para que me sinta perdido, pela primeira vez, em tão bom sentido. Vaguear inundado pelo massivo verde talhado que me empurra de um lado para o outro entre caminhos cheios de melodia para que haja intimidade, é absolutamente único. O desenho previu criar emoções, jamais distantes da imensa beleza do jardim, e estas estão no sobressalto que os vários níveis da topiaria provocam. Quem diria que seria possível tanta obra e minudência num clima mediterrânico, como o algarvio, intensamente soalheiro e moderadamente seco? É, sem desviar das preocupações sustentáveis que nos obriga a responsabilidade e respeito para com o planeta.
O grande campo cultivado em torno desta grande obra na paisagem ajardinada portuguesa, vê a cultura de sequeiro aliviada por canais de regadio antiquíssimos que rasgam desde longe o solo, trazem a preciosa água que esventra o jardim com ampla permissão e rega-o. Não só faz-se o genial uso de técnicas ancestrais, outrora aplicadas na agricultura, agora em proveito da criação de um tremendo belo jardim, mas também preserva viva uma rotina milenar que o homem pratica. Uma consciência patrimonial que se encosta à puríssima beleza do gosto e do risco que aqui encontrei. Não há jardins perdidos mas muitos conheço-os escondidos do que se espera ver em Portugal. Este é absolutamente um deles.
Belo, discreto, tem a força do estilo mais apurado que se lê no seu movimento. O jardim mediterrânico de expressão clássica francesa está declarado na Quinta da Lua. E qualquer dúvida que não o caracterize assim, dissipa-se.
Os princípios que regem o jardim
A leitura é tão simples como a nobreza dita, preenchida de agudeza, discreta e regrada. Jardim impregando de agudeza, num excelente exercício de contrastes de cores opostas e extremas, o claro e o escuro, o branco e o preto, favoritas do seu proprietário e mentor, a quem coube a decisão de o conceber. A gravilha, cuja função clara, estende-se como um tapete au bon goût francês, magistralmente nos encaminha ao pequeno luxuoso Guest House, situado à distância certa do portão de entrada para que, acolhidos primeiramente pela inesgotável beleza da paisagem do jardim, aludindo à maneira palaciana, um inebriante sorriso seja a primeira genuína reacção e boa influência a quem aqui chega. As estruturas e o mobiliário aparentemente neutros, cumprem a função escura, e completam-se subtilmente, ora por oposição, ora por aplicação como cânone clássico.
Jardim impregnado de discrição, tem na vegetação uma equação repetida, assumida, para que se vejam e revejam as formas redondas que a topiária emprega às plantas, neste caso, apenas às espécies de porte arbóreo, cujo resultado é de perder de vista, num espaço afinal confinado. De notar que o clima mediterrânico não permite os extensos parterres de buxo e relvado e é preciso reconverter as limitações ecológicas em soluções capazes. Brilhante, diria. Mágico, defendo, já que a dimensão de cada arbusto delicadamente arredondado é pensado para que este jardim se descubra por cima do nosso ombro, e nos esqueçamos que existe algo mais que a nossa intimidade. Os hóspedes que aqui permanecem procuram essa eleição, em qualquer parte do jardim. Conseguem-na. Jardim impregnado de regras, simples, as que a natureza tolera do jardineiro sagaz e erudita.
Não observo nenhuma imposição excessiva mas sobejamente estética para que haja melodia no movimento do corte das sebes, no recorte dos caminhos e nos arbustos aparados com a leveza aparentemente contrária ao que esperaríamos da alguma dimensão de cada exemplar, porém, alcançada. Melodia ligeira que nos lembra leveza. Leveza na leitura prodigiosa da paleta de tons de verde; verde-escuro, verde-seco, verde-musgo, verde-azulado, verde-claro, verde mate, verde-brilhante, verde-cinza, verde-aberto, verde-intenso que completa a composição vegetal esculpida da Quinta da Lua. O elenco de espécies é de uma simplicidade que viola a originalidade. Eis mais uma opção de maestria quando a lista resume-se a pouco e assaz vulgar com efeito final único e singular.
O jardineiro esculpiu espécies arbustivas, conhecedor da arte da topiária mas juntou a perspetiva e profundidade, que a área do jardim não permitia explorar fisicamente, também através da disposição e jogo cromático das folhas das espécies. Anula-se a rigidez que a regra por si impõe, quando nitidamente, percebo que as formas elementares do jardim seguem somente o princípio do movimento redondo e curvilíneo. Reconhecem-se as oliveiras, as figueiras, as amoreiras, as romãzeiras, alfarrobeiras, os loureiros, os citrinos, ciprestes na leitura dimensional dinâmica que o jardim exige e as amendoeiras e as alfarrobeiras pelo dramatismo que conferem à paisagem do magnífico barrocal algarvio, lindíssimas árvores que narram o carácter isolado deste jardim mediterrânico clássico de laivo francês, colocando-o de imediato com a sua merecida identidade geográfica. É esse o orgulho que leio neste excepcional jardim hasteando-se como um jardim impregnado de respeito pela paisagem onde se insere; o Algarve.
A arquitectura dos troncos
Genialidade artística no emprego da condução dos ramos e a estilização da ramificação da Rhaphiolepis bibas syn. Eriobotrya japonica, também esta da distante província chinesa de Hubei e Chongqing, as nespereiras, compostas de modo a simplificar-lhe a figura para dotá-las de um penetrante aspecto decorativo. O trabalhoso esmero na definição dos pequenos ramos para conseguir reduzir a uma linha estilizada, explora o melhor da arte da topiária. Saliento o demorado processo, com final absurdo de tão bem-sucedido, no rebaixamento e ramificação do tronco principal da árvore, empresta-lhe um incomum efeito envelhecido essencial para o desenho geral que se obtém pacientemente.
Rara condição de bom gosto e particularidade em transformar espécies vegetais em peças esculpidas longe dos exemplos burlescos que tristemente abundam. Jardim impregnado de erudição, reduz ao essencial a variedade cromática na floração, decompõe e dispersa as cores, quando as há, sabiamente em alternância de período de eclosão, mantendo, deste modo, um raro aspecto sempre polido, pontualmente pintado. Protagonismo na fina cor branca, celeste e lilácea. Remate incondicional e sentimental no uso dos ciprestes como pinceladas finais na grande tela ajardinada. Não há alinhamentos para evitar a reprodução de qualquer outra paisagem que poria em risco a forte identidade algarvia que o proprietário não quis sufocar.
Belo, ameno, suave, sedutor, jardim impregnado de sensações elegantes, categoricamente muitíssimo bem adjectivado entre os jardins europeus. Jardim impregnado de encantamento, sonetos plantados em canteiros, é no vento que se ouvem as palavras que densifica silenciosamente o espírito. Jardim por onde o olhar se estende demoradamente e intensamente definimos fragrâncias. São estupendas, são os pormenores voláteis desta obra de jardim que entra numa qualquer disciplina da arte. Discreto pomar velado surge ao lado de quem passa no soberbo jardim declarado aos sentidos. Imponentes pés de Brugmansia suaveolens anunciam a entrada visual do rico pomar, com dezenas de perfumadíssimos trompetes feitos de pendentes pétalas amarelas. Elegante anúncio para quem descobre afinal que encontrará deliciosos frutos amadurecidos pelo sol do barrocal algarvio.
Pormenores de grandeza maior
Nada foge à evidente estética, sendo o seu mentor um esteta, alinha todos os elementos do jardim no mesmo princípio de excelência; a disposição dos vasos e floreiras obedecem a uma posição que cria ambiente, desenvolve perspetiva que se descobre ao nos aproximarmos. Do mesmo modo, surgem exemplares arbustivos cujas formas arredondadas e rasteiras recortam os caminhos de tal modo que nos levam a notar o belo efeito que produzem.
Desenho intimista de percursos e caminhos
Pequenos percursos impressionantes impregnados de perfeição botânica. Lugar onde a fina jardinagem encontra um enorme conforto, a topiária irresistível e tangível dota o notável jardim de uma íntima linguagem táctil. Tão poucos se elevam em tantas linguagens, visual, sensorial, emocional, essa proximidade preenche tantos canteiros como o ritmo das espécies delicadamente eleitas para compô-lo. Jardim no limite do obsceno pela intimidade a que nos conduz ao corpo, à alma e ao olhar.
A conjugação de exemplares envasados
Tenho visto jardins bem feitos, entre muitos interessantes, bastantes impressionantes mas invulgarmente perfeitos, não. São capazes de mostrar um excelente estilo, num rigor de projecto deveras apreciado mas numa maneira de falar certa do princípio ao fim, sob um escrutínio exigente, sobre o assunto que considero muitíssimo discutível – o gosto – conto poucos que confirmam enquadrar-se na categoria do bom gosto. O jardim da Quinta da Lua, revela uma aprendizagem notável do seu mentor que manifesta nos pormenores criteriosamente selecionados para ornamentar o espaço exterior.
Padrões clássicos nas lonas, toldos, esteiras e almofadas, cujas riscas defendem de modo soberbo a discrição, enquanto a cerâmica, numa escolha certeira com a mesma filosofia de saber integrar com elegância num jardim exigente como este, tem foco no verde vidrado. As peças tornam-se apontamentos distintos embora recatados que reparamos por força dessa comunicação. Ao revelar-se, o jardim comunica as intenções do seu mentor, que assim quis falar de como a simetria e a geometria na jardinagem, a estilização e condução de ramificações vegetais, a repetição cromática de um só tom e a insistência numa paleta reduzida de cores de flores, dão, a tão amado jardim, uma assinatura que claramente reflete a inspiração que motiva o seu mentor: a estética. A perspetiva é assumidamente conseguida através de desenhos rectos que nos conduzem a uma distância sem, no entanto, apresentar um cenário impactante, não é esse o propósito senão manter-se fiel a uma serenidade expectante que o jardim encerra. Certo é saber que nada é provocador, quando o esforço é querer transmitir harmonia.
Abrigos e cabanas de jardim divertem-nos, distantes entre si, causam uma excitação férvida por querer descobrir este jardim de aventuras subtis e inesperadas. Cada um numa linguagem própria, todos são unânimes na função cénica. Acabamentos e remates na apresentação do jardim Impregnado de essência, a mente escorre tanta paz que a estética aqui neste jardim me traduz, capaz de me pôr audaz para sentir o vigor que a vida me traz. Jardineiro que se emociona com a estética foi autor desta belíssima composição de notas vegetais coroado por um céu brilhante e azul de fim de Outubro, ainda há lugar onde tudo está perfeito e sobram palavras sublimes de encantamento por cada passo lento e rendido que nos caminhos dou.
Silêncio melódico ou levado por uma ladainha que a natureza me conta, poder olhar para este jardim de poemas impregnados nas formas vegetais atribuídas é viver um jardim de arte maior. Não discuto, observo. Entrego os sentidos ao exímio exercício da melhor jardinagem que conheci. É aqui que se exibe, discreto como a elegância mais elevada sabe preservar, talvez o melhor risco paisagístico de estilo Provençal em Portugal. É a linguagem deste jardim, repetido mas jamais monótono, que fundamenta a sua beleza na constante linguagem que mantém com o receptor.
A fruição do jardim da Quinta da Lua contempla uma conversa, em silêncio, com quem nele percorre e se envolve. Jardim impregnado, conjuga no infinitivo o verbo envolver, plantado como quem o descreve com a mesma paixão de vê-lo amanhecer. É assim que se tornou adulto, maduro e maior de todos os jardins que vestem um difícil reduzido elenco de espécies escolhidas. São meramente um punhado, trabalhado com tanto rigor que deu balanço nas perspetivas com alcance e profundidade. Tudo se transforma em telas de puríssimo estilo sóbrio projetado, com enorme cuidado e sublinhado louvor.