Revista Jardins

O trilho de Nakasendo

No passado inverno, na minha visita anual ao Japão, resolvi aventurar-me com uma amiga japonesa pelo famoso trilho de Nakasendo (Nakasendo Trail), um dos dois caminhos (o outro era o Tokaido) que uniam Tokyo a Kyoto durante o período Edo (1600-1868). Com 534 km de comprimento, o Nakasendo ostentava 69 postos de abastecimento e constituía a alternativa preferida dos daimyo (senhores feudais japoneses) porque percorria o interior montanhoso do Japão. Foi a descoberta deste Japão dos séculos XVII e XVIII que me pôs ao caminho para percorrer a pé, não os 534 km, que para isso não chegam nem as pernas nem o tempo, mas, pelo menos, uma parte do percurso.

O ryokan que me acolheu em Tsumago

O início do percurso – Magome

Tinha três dias livres e resolvi começar por Magome. Esta aldeia é já de si de acesso complicado e implica, a partir de Kyoto, mudar três vezes de comboio. O nosso trajeto desenhou-se ao longo dos três dias, pernoitando uma noite em Magome, outra em Tsumago. O atrativo destas duas aldeias é que estão completamente preservadas da contaminação tecnológica de todas as urbes nipónicas.

O interior da casa de um notável da terra
O ambiente envolvente

Propositadamente, não há néones e não há hotéis, mas apenas ryokan (pousadas tradicionais japonesas). Estes têm apenas seis, sete quartos sem casa de banho, onde tem de se respeitar um recolher às dez da noite. Depois dessa hora as portas são fechadas. Tanto Magome como Tsumago não têm os horríveis postes e fios elétricos aéreos (devido aos tremores de terra), e os turistas curiosos limitam-se a lá estar uma ou duas horas de passagem quando a camioneta da excursão lhes permite uma paragem.

Da janela do quarto, tinha vista para o jardim do ryokan

A partir das três da tarde, as aldeias pertencem apenas aos seus habitantes e aos que por lá pernoitam. Atualmente, os assaltantes do séc. XVII desapareceram, tornando a aventura da caminhada bastante mais tranquila. O que não me tranquilizou foi verificar que no caminho ainda havia uns postes com um sino que se deveria tocar caso aparecesse um urso. Não cheguei a perceber se o sino servia para chamar um guarda florestal se para afugentar os ditos ursos.

O trilho rodeado de Hinoki (ciprestes japoneses)

De qualquer forma, não encontrei, ao longo dos 20 km que percorri, nem guardas nem ursos. Aliás, a única companhia que tivemos foi o chilrear dos milhares de pássaros, o sopro do vento nos hinoki (ciprestes japoneses) que, do alto dos seus cerca de 35 metros, pouca luz do sol deixam escapar para o solo. Mas omnipresente mesmo é o marulhar da água, que está em toda a parte e são incontáveis os riachos, e as quedas de água que encontrámos pelo caminho resultado do degelo nas montanhas e das chuvas frequentes.

A bagagem

A minha bagagem consistia numa mochila com cinco quilos, onde, além dos produtos de higiene básica, tinha uma muda de roupa e a tralha eletrónica que sempre me acompanha. É que no mês de fevereiro não há a facilidade de poder mandar seguir a bagagem por estrada para os destinos das pernoitas. A ausência deste serviço, apenas disponível entre maio e setembro, diminui o número de caminhantes, o que torna a experiência mais próxima do que era no percurso dos daimyo.

Cursos de água por todos os lados

O trilho

O caminho é por vezes empedrado com pequenas pontes rústicas de madeira para se atravessar os riachos. No entanto, a maior parte do percurso é em trilho irregular, escorregadio e perigoso porque estava molhado. Todas estas dificuldades levam a que o trilho de Nakasendo tenho sido a experiência mais próxima do Japão tradicional que vivi em deambulações por aquelas bandas.

Trilho de pedra bem íngreme
O abrigo

Este primitivismo do trilho faz com que a minha velocidade média de caminhada, fosse consideravelmente abrandada. Ao fim de três horas de caminho com 6º C, já dava o meu reino por um chá quente. Mas benditos japoneses! Sabendo das carências dos caminhantes, existe uma cabana posto original do princípio do séc. XVIII que ainda funciona. Aí, o caminhante pode beber um chá e comer um bolinho…de borla.

As noras ainda funcionam

Seguindo a tradição, alguns habitantes locais disponibilizam um serviço voluntário que oferece abrigo e aconchego a quem necessita. Acabei por ficar mais de uma hora com o Watanabe San, o voluntário do dia. Watanabe explicou-me como funciona aquele improvisado serviço e contou-me como era muito interessante conhecer os peregrinos que lá iam parar. Na cabana, deparei-me com uma discreta caixinha de cartão. Dentro dela um Arigato e Thank You escritos à mão eram o único subsídio daquele abrigo, iniciativa da população local. Uma total subtileza bem à maneira dos japoneses.

Gostou deste artigo?
Então leia a nossa Revista, subscreva o canal da Jardins no Youtube, e siga-nos no Facebook, Instagram e Pinterest.


Exit mobile version