Revista Jardins

Jardins virados a sul (parte I)

Jardins virados a sul

 

A reinvenção dos pátios alentejanos.

 

Estão nos pátios e nas açoteias as melhores telas de fundo para imaginar abordagens um pouco mais audazes, desviantes do que tanto me identifica, a ponto de me fazer pensar que estou a jardinar num estilo abstrato, pouco real se insistir em encontrar alguma explicação natural senão a sensação fatal de sentir que algo inebriante está a acontecer. Este é mais um exercício que fiz, projetando três espaços diferentes, com linguagens diferentes embora comuns na geografia que me inspirou: o sul da Europa. Dois pátios e uma açoteia são os palcos para teatralizar ideias, trazê-las à vida e prazer da casa, como cenários que rompem com a monotonia num único lugar. Em todos, as plantas complementam e não dominam, porque a ideia é aclamar o espírito óbvio do estilo temático de cada espaço exterior.

Quando uma casa não tem um, repito, um lugar para colocar uma planta, o que se faz? Decidi, de imediato, criar espaços onde cultivá-las. Com 120 m2 de área coberta e nem um parapeito nas três únicas minúsculas janelas de origem, não se descobria qualquer comunicação com o exterior. Inabitável. Impensável. Mas absolutamente exequível. Era necessário reverter e dotar a casa de luz, linguagem estival e alma. Da área coberta, boa parte passa a descoberta, criando pátios e açoteias ao gosto do Sul.

 

 

Embalado pela doçura da arquitetura popular e da história raiana portuguesa, muçulmana e espanhola, o interior da casa é desenhada e reduzida segundo os caprichos que os três jardins impuseram; eles armaram a alma do projeto, onde explorei dois elementos essenciais nas terras do Sul, ou seja, a inspiração para criar os jardins de sol e os jardins de sombra. De acordo com a estação, verão ou inverno, o pátio de sombra e a açoteia de sol têm usos diurnos ou noturnos no privilegiado e soalheiro Alentejo. A casa, embora pequena, ganha extensão através da versatilidade assente no princípio de jamais se tornar monótona, onde circular irá sempre terminar no exterior. Julgar só porque é absolutamente lindo é forte demais para não exigir da minha imaginação, ela existe para me dar essa extensão à vida. A exuberância da Natureza faz a razão maior para que explore tudo o que puder, enquanto for belo onde estiver. Esse é o entendimento pelo qual impus o design das plantas como causa para completar a arquitetura eclética de cada espaço.

As linhas morfológicas das espécies ditaram a sua eleição, priorizada sobre a forma.

Descubro, ensaiando, que ao desenhar em projeto jamais se consegue a noção correta do resultado. Na verdade, a experiência ensinou-mo e assim ajo com a prática em detrimento da teoria porque num plano desenhado é árduo perceber quer a volumetria quer o impacto visual que as plantas escolhidas realmente irão ter no exato momento da sua montagem.

Prefiro confiar na capacidade de gravar a imagem do jardim ou local a jardinar na minha memória e definir totalmente inspirado na intuição, visão e imaginação o possível e melhor resultado final. Uma vez escolhido o elenco de plantas a plantar, é num par de horas que a distribuição e a inevitável redistribuição, em relação ao inicialmente pensado, do lugar efetivo onde ficarão, surgem. Todo o trabalho de criação está concentrado num ato único, definido num momento só, tal como se pinta algo muito abstrato, todavia sem preterir rigor e determinação.

 

Açoteia

Fascinantes açoteias da arquitetura do sul de Portugal e de Espanha, herança que os moçárabes impregnaram nas terras com sol e sede, lembram o Magrebe tão próximo.

A evasão de vistas destes espaços é inspiradora para a montagem de um jardim de açoteia numa interpretação moderna de paixão pelo passado. Será um jardim seco, capaz de enfrentar a canícula, facto que exigiu uma escolha meticulosa das espécies a plantar. Um planeamento que levou 11 meses de trabalho e muitos outros de experiência para chegar à maturidade do conjunto de espécies, selecionadas pelo seu design e resiliência.

 

 

Caiadas a lembrar um enorme manto de ouro branco, paredes, chão e telhas, a intenção é envolver o jardim num único ambiente que reita a luminosidade do pôr-do-sol, perfeito para tranquilos momentos de convívio. Não é a cal que tudo cobre a pureza, é a razão de exortar o sul, porque o sol não queima a única cor que não tem cor.

A loucura da floração da Pycnosorus globosa syn. Craspedia globosa é tão oposta à palidez da discretíssima planta quando entra em período de repouso, custa resistir a não cruzá-la, com o merecido papel principal, num desenho de jardim xerófito. Se me aventuro na inacabada viagem que são todas as formas e volumes das cactáceas, está, inquestionavelmente, na cor vibrante do movimento que cada bola-flor adiciona ao exercício da combinação de catos, o resultado absolutamente enfeitiçado deste trabalho. O jardim da açoteia é uma tela que se pinta com movimento intenso quer na cor quer na surpresa desta espécie de erva, a minha favorita entre as herbáceas e gramíneas que não tão frequentemente afloro. Aplico-a debaixo de calor intenso, não se queixa por falta de água nem de um frio também intenso que possa surgir. Nativa do leste australiano é uma grande sugestão para os jardins de Portugal onde o clima é mais duro.

 

Pátio árabe

Janela que se debruça sobre a última imagem de Portugal, de que aos soluços e de esguelha se avista a bela Espanha, terra imensa. Estamos no centro histórico de Elvas, a cidade brucista sobre o país vizinho. O pátio fala de uma alma embrenhada numa cultura forte que deixou o sul da península há mais de 500 anos, sempre lembrados na cor forte, nos ornamentos carismáticos, na arquitetura popular que a mim importa explorar. Rendi-me e entreguei-me a criar três jardins de espírito subjugado à arquitetura, tudo num só lugar. Este pátio, com intensa influência muçulmana, é um inusitado e raro jardim de luzes, reflexos e sombras onde as plantas são ainda menos atrizes do que o equipamento de ornamento, sempre presente no espírito da ríade. Senti-me a inverter os preceitos como jardineiro, mas não pude deixar de perceber que um jardim sem a presença frequente do jardineiro exige um cuidado extremo na forma como inventá-lo.

Uma fuga foca-se no abuso da cor, na projeção de sombras e nos padrões das espécies.

Os pequenos espaços feitos para poucas plantas, por opção de posse do espaço e não tanto para contemplação das plantas, permite aflorar a estética dos objetos, empregar a cor que terá um papel principal na intenção de ofuscar os sentidos e a perceção. A cor densa destacará qualquer forma vegetal que plantarei neste pátio de sabor islâmico.

Contudo, procurei todas as linguagens possíveis no pátio e que a cor forte rosada das paredes permite: uma viagem por culturas distantes e opostas, de Marrocos ao México, que tão bem exploram a paixão pela cor. O contraste será sempre notado através da forma das espécies escolhidas bem mais que pelo ornamento ou padrão da folhagem das plantas. Nestes lugares pequenos onde é importante trabalhar a luz e o sombreado, o design da silhueta das plantas aplica-se fundamentalmente. Exercício que me agrada muitíssimo conceber pois estimula o aspeto estético das plantas como se fosse um escultor e não um mero jardineiro.

 

A melodia da harmonia alentejana em Faleiros

 

A porta da casa abre-se para a lonjura alentejana e, no terreiro, o convite do jardim selvagem sobranceiro é um favor que ali devemos à serenidade.

 

 

Não é certo que fale de modo mais preciso sobre o monte do Saltamontes, na aldeia de Faleiros, Terena, somente porque vou descrever a paisagem que engole as casinhas que a Maria e o Pedro resgataram com o entusiasmo de quem descobre na imensidão alentejana um tempero para o espírito seu e de quem ali se aloja. É o fascínio que a solidão e o silêncio exercem que mais move a vontade de ali ficar, demoradamente, a deleitar a vida.

Uma assumida “vontade de encontrar o sítio certo para plantar a ideia de refúgio fez-nos percorrer o Alentejo durante mais de um ano até chegarmos àquela terra esquecida”. Ele apaixonou-se pelo casario do monte; ela pela figueira, pelo cato Epostoa guentheri que tanta personalidade dá ao jardim, e claro, pelas alfazemas e o alecrim que vestem o campo.

No interior, viajamos no entusiasmo de Maria e Pedro, que decoraram o conforto garantido a quem pernoita nas casinhas. No exterior, tomamos consciência de que não o quis focado na reprodução da comum linguagem alentejana, mas inspirado por décadas de conhecimento de culturas do mundo em viagens que cumpriu.

Recuperou a posse de algo que se perdeu quando iniciou a recuperação da área que passou verdadeiramente a chamar jardim no modo como deixou a Natureza expressar, livre e conquistadora. Respeitou as oliveiras, mestres da paisagem, e o pomar de fruteiras que enumera como amante. Deu liberdade à amendoeira, que, por fim, ganhou um possante tamanho, desembaraçou a Wisteria sinesis, uma vigorosa glicínia que não teme pelo terreno que toma e se deixa crescer por onde quer. Delira ao vê-la no abraço à oliveira. Não há estilo senão uma tendência divergente na plantação; a ‘bananeira angolana foi oferecida por uma hóspede que a tirou do seu quintal de Oeiras e que já se tornou alentejana, os agaves, a buganvília e todas as que nos vão oferecendo e vamos ali plantando’, diz com efusão de quem descobre a aventura das plantas “que, apesar do imenso calor e imenso frio, se vão estabelecendo e crescendo”.

Dedicou-se a assinar de modo criativo os toscos bancos de cimento com almofadas coloridas feitas com típicos tapetes de trapos “onde ninguém resiste a sentar-se”, orgulha-se. Esta nota é um belíssimo apontamento que desfaz o jardim do que nos espera o habitual Alentejo. A olaria é espalhada como ornamento de jardim, afirmando a cultura e arte popular no design paisagístico.

Motivou-a o poder que exerce “um pequeno pedaço de terra e ter ganho um horizonte de tirar a respiração, observar um céu como não vê em parte alguma, a sugestão de receber amigos, amigos de amigos e outros que ali querem passar uns dias, a evolução de um projeto maior na recuperação do casario cercano, a relação com as ovelhas do vizinho que ajudam a manter o terreno limpo” e o precioso espetáculo de assistir à dramática alteração da paisagem ao longo do ano.

 

Em breve poderá ler sobre os outros dois jardins alentejanos que integram este artigo. Fique atento!

 

Veja ainda “Jardins virados a sul: Monte da Mesquita”

 

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