Revista Jardins

O encontro do Rio Douro com o Rio Coa

Rios Douro e Coa

 

O lugar onde dois rios se abraçam e se juntam como família que são, reconhecendo ambos a sua origem e a sua pertença às entranhas da terra-mãe, é um lugar de magia e silêncio.

 

Presenciar o encontro de dois corpos líquidos e ondulantes, um abraçando o outro, o Douro, o terceiro rio mais extenso da Península Ibérica, nascido em Espanha nos altos picos da serra de Urbião, depois de ter atravessado o extensolanalto de Castela-a-Velha e comum curso bastante regularizado até Samora, toma a direção nordeste-sudoeste e a partir daí fura montanhas e vales, encaixando-se entres escarpas e falésias abruptas de fortes declives, tal é a vontade de chegar a terras portuguesas. Em Barca de Alva, entra em Portugal e, num belo percurso a caminho da sua foz perto do Porto passa por Figueira de Castelo Rodrigo, Almeida e em Vila Nova de Foz Côa acolhe no seu leito um dos filhos favoritos, um dos principais afluentes, o rio Côa que o envolve e o abraça depois de uma caminhada de 135 km entre históricas aldeias, muralhas antigas, montes e vales e grandes penhascos graníticos, vivos de tanta história e tanta paisagem.

 

 

O Côa brotou da terra em Fóios, perto da fronteira com Espanha, a cerca de 1200 metros de altitude na serra das Mesas, um importante complexo geológico perto da serra da Malcata no concelho do Sabugal.

Este mítico rio, já tão importante para os sucessivos povos que habitaram as suas margens desde a pré-história e nelas deixaram marcas, abraça uma enorme biodiversidade de plantas, árvores, arbustos, insetos, mamíferos, répteis e pessoas, claro está.

Vale a pena conhecer o caminho deste rio da nascente até à foz e deslumbrar-se com tanta história natural e arqueológica desta região do interior centro de Portugal.

 

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Os passadiços

Peço desculpa aos leitores pelo facto de esta crónica ser mais geológica e geográfica do que propriamente botânica, mas a verdade é que todo este território é paisagem, não apenas de vinhas e socalcos feitos pelo Homem, mas também lugar onde a Natureza se impõe de uma forma selvagem e resiliente.

É essa Natureza que faz brotar em mim uma profunda sensação de ligação, de pertença à terra.

Nos dias 23 e 24 de abril, tive o privilégio de ter sido convidada para o mais antigo festival de música e poesia do nosso país, que se realiza em Vila Nova de Foz Coa e que leva músicos, escritores e outros artistas a conhecer esta região do interior de Portugal. Celebrou este ano o 40.º aniversário de existência desde a sua fundação, em 1984.

Existem paisagens que nos deslumbram e acordam em nós respeito e gratidão por todas as formas de vida, lugares que são poesia no seu estado bruto e puro, esta é uma delas.

Fui conhecer o Museu do Côa, mas, como não dispunha de muito tempo, tive de optar entre andar duas horas no interior do museu, descobrir a história e a pré-história daquele território onde se conhecem mais de 1200 rochas gravadas com cerca de 80 sítios diferentes na sua maioria de tempos paleolíticos mas também da Idade do Ferro ou da época histórica, assim como a exposição da Graça Morais, ou a segunda escolha, pela qual optei, caminhar no exterior os cerca de mil degraus do passadiço em descida e que nos leva desde o topo, onde se encontra o edifício do museu, até ao fundo do vale, onde o rio Côa mergulha docemente no grande Douro.

Senti que estava em local sagrado, descalcei-me e fui descendo, sempre de olhar atento pousado em toda a vegetação circundante e abundante. Desci devagar e em silêncio, agradecendo a paz daquele momento e o facto de ser a única pessoa que por ali andava.

 

A vegetação

Fotografei muitas amendoeiras, campos belíssimos de roxo e amarelo de rosmaninho (Lavandula pedunculata) e giesta amarela (Cytisus scoparius) a servirem de tapete a velhas oliveiras e de alimento a muitas borboletas e abelhas.

Encontrei zimbro em estreita comunhão com perfumadas madressilvas, várias espécies de cenouras-bravas a dançar na brisa, também encontrei brizas e espargueiras, azinheiras (Quercus rotundifolia), bolotas, azeda-das-paredes (Rumex induratus) com as suas delicadas inflorescências em tons rosados, mentas e erva-caril (Helichrysum stoechas), canafrecha (Thapsia villosa) de enormes flores amarelas a emoldurarem as águas lá no fundo do vale, o aromático (não o são todos os tomilhos? Mas este é especial) tomilho-bela-luz (Thymus mastichina) e figueiras que pareciam nascer da força do granito, muitos cardos, borboletas, joaninhas, abelhas, chilrear de aves e o som silencioso de dois rios que comunicam e se abraçam no fundo de um vale como velhos amigos que sabem que alimentam paisagens e a alma das pessoas.

Senti pulsar em mim o coração da Terra, imaginei que suor e sangue, ranho, lágrimas e seiva são afinal a mesma pele líquida e sólida, mineral e vegetal, o mesmo ADN que corre em nós e também naqueles rios que brotaram das estranhas desta Mãe que nos nutre e que é ao mesmo tempo Mãe e Casa de todos. Os antigos sabiam-no e mantinham viva essa ligação feita de respeito e veneração.

Voltarei a este vale, a estes rios, voltarei a mim neste território de poesia e ancestralidade.

 

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