Na vida, a jardinagem começa quase sempre por ser uma tarefa experimental e inconsequente. Em que momento da tua se tornou esta paixão que te esforças por disseminar?
Talvez quando fiz uso da curiosidade como fonte de conhecimento, sabendo que estava nas plantas o que realmente me interessava. Ainda criança, fazia pausas no comportamento típico infantil, como brincar, gritar, correr, saltar, e interessava-me por assuntos de adultos. Nesse momento, olhava com total ignorância mas com intenso fervor o que as plantas me propunham descobrir: folhas, formas, pétalas, silhuetas, flores, cores, perfumes, paisagens, feitios, vida, fantasias e desejos perfeitos para estimular um bem com o qual nasci: a criatividade.
A jardinagem é uma mera prática na qual a criatividade encontrou um outro veículo para se expressar. Se simplesmente interferir na paisagem natural é jardinar, então desde muito cedo que o faço. A paisagem é o meu cenário principal como pequeno ator que sempre planeou plantar para sentir.
A Academia do Jardineiro Lisboeta (AJL) surge na capital e em Portugal como um oásis para quem procura expressar e expandir o seu gosto pela botânica e os muitos mundos dentro dela. Que ambições norteiam este projeto plantado no centro da cidade?
A AJL é uma voz que os jardins nunca tiveram. Os jardins fazem-se ver, mas não ouvir. Na academia, existe lugar para debater e divulgar todos os assuntos que cabem no vocabulário do jardineiro e dos jardins. Não há pretensões académicas, mas há rigor científico na partilha do conhecimento, haverá grandeza de espírito de todos os interessados que na academia se sentirão jardineiros, porque é essa a maior mensagem deste lugar; a academia é um jardim literário para que todos leiam folhas escritas sobre botânica, vejam flores fotografadas e ilustradas, caminhem os sentidos por bosques e florestas descritos em livros, sintam as fragrâncias imaginadas, saboreiem as virtudes que a Natureza vegetal desperta no Homem. Haverá espaço para a aprendizagem de assuntos ligeiros das disciplinas da botânica, haverá curadoria de exposições dedicadas ao mundo vegetal, seja qual for o título. Na academia caberá todo o interesse sobre qualquer tema do Portugal natural, de qualquer parte do nosso País. É meu intuito dotá-lo de mais jardineiros esclarecidos sobre as infinitas possibilidades que a jardinagem tem para partilhar. A academia leva o nome de Jardineiro Lisboeta tão mormente porque nasci nesta cidade, porém todos os gentílicos do País terão acolhimento aqui.
Na biblioteca, os jardins podem ser lidos e mais bem compreendidos. São prateleiras abauladas pelo peso dos manuais que guardam toda a sapiência que faltará ao público conhecer sobre a paisagem vegetal urbana e selvagem de Portugal e do mundo.
Que pessoas, ideias, produtos e eventos interessantes podemos esperar encontrar dentro e fora das portas da academia?
Além de, ocasionalmente, promover o espaço para a venda de objetos inspirados na botânica e nas outras disciplinas das ciências da natureza, a AJL, propõe-se, no geral, como lugar para o encontro, estudo, reunião, debate e divulgação de assuntos de competência natural e cultural, compreendendo atividades de investigação científica e de desenvolvimento, com oficinas de jardinagem, prática, teórica e literária integrados em ateliers de assuntos de botânica cuja programação decorrerá ao longo do ano. O depósito do acervo da Biblioteca Botânica compreende as atividades de documentação e informação que envolvem a organização das coleções de livros com relevo para as obras especializadas em botânica tropical e subtropical. O espaço da biblioteca comporta ainda áreas diferenciadas e destinadas a ampla fruição, acolhendo a coleção de história natural vegetal, herbário e gabinete de curiosidades.
Conta também com uma exposição de postais ilustrativos da paisagem vegetal e jardins públicos de Portugal continental, de 1800 a 1950. O gabinete de atividades e sala de consulta e estudo da Biblioteca Botânica, instalado numa pequena sala de leitura, albergará atividades e manifestações variadas chamadas Ateliers, atempadamente agendadas através da conta de Instagram academia_jardineiro_lisboeta, que proporá encontros de desenhistas inspirados pela estética das ciências botânicas, seja na interpretação livre como no desenho rigoroso e ilustração científica. Ateliers de design paisagístico e projetos de pequenos jardins, realização de workshops, cursos e eventos de artes e ofícios, cujo domínio respeitará as ciências botânicas e todas as suas disciplinas sociais e humanas, manifestações direcionadas para a divulgação de conteúdos educativos de jardinagem e botânica, publicação de boletins on-line sobre os assuntos de botânica. Consultadoria científica em matéria de plantas, aplicação de plantas na jardinagem e paisagismo, assessoria em matéria de jardinagem, disponibilização de informação relativa à identificação de espécies de plantas, serviços relacionados com flora, angariação e promoção de viveiristas de plantas raras, paisagismo tropical, subtropical, xerófito, mediterrânico, eventos de exibição temporária de obras de autores inspirados na Natureza vegetal ou arte botânica.
Inovará com a apresentação da jardinagem literária enquanto espaço de criação artística e literária como palestras, discussões, encontros de leitura e tertúlias de temática versada sobre paisagem, botânica, jardinagem, artes e ofícios dos jardins. A reintrodução do ambiente de convívio cultural é privilegiada como veículo de aprendizagem e partilha de conhecimento entre jardineiros e todos os que se interessem pelo tema. Teremos oficinas para o jardineiro-poeta urbano com noções e afloramentos sobre o novo ofício do jardineiro erudita e aprofundamento dos aspetos culturais enquanto escultor de paisagens e escritor de poesia florística. O jardim como tela artística e técnicas para a execução do espaço verde como objeto de arte. Ateliers de botânica comparada e montagem de episódios paisagísticos. A recriação de lugares do mundo no jardim de casa. Seminários de historiografia dos jardins, geobotânica e etnobotânica e visitas organizadas a jardins científicos e históricos, parques e locais de interesse botânico ou paisagístico.
Jardinar leva tempo; jardinar melhor leva mais do que isso. O que achas que cada um pode e deve fazer pela boa jardinagem no nosso País?
Quem jardina fá-lo sempre com a esperança de partilhar beleza. Impossível será haver jardins plantados sem nunca o jardineiro esperar reconhecimento. Por essa tão pura razão, o jardim é uma mensagem do belo e de paz ao mundo.
Basta esta premissa para que qualquer jardineiro seja um arauto de que precisamos para o bem. Sabendo que não somos um povo que cuida nem promove jardins, qualquer que surja surge como um bem precioso.
Creio que estamos distantes das boas práticas da jardinagem enquanto atividade profissional. Se, por um lado, não existem escolas cujo conhecimento atualizado eleve a qualidade dos nossos jardins públicos, por outro, as práticas aplicadas na jardinagem privada são inspiradas maioritariamente por tradição oral. Mitos e conhecimento popular estão frequentemente desvirtuados daquilo que atualmente se sabe e exerce sobre este tema, com grande impacto no resultado final do esforço da população que jardina. Os jardins são pouco arrojados e revelam uma leitura estética profundamente divergente das possibilidades que o clima da maior parte do nosso território permite. O avanço na divulgação da utilidade de jardinar é, talvez, o primeiro passo para recuperar a esterilização das nossas cidades, a pavimentação dos lotes e quintais, a impermeabilização de terrenos e espaços cultiváveis, sobretudo em meio urbano. Assim, qualquer jardim ou qualquer gesto que resulte da jardinagem, em Portugal, é já um bom passo. Ultrapassado este desafio, a jardinagem é um mundo criativo desvairado de possibilidades.
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