Filmes que mudam o mundo.
Criado em 1995 pela Câmara Municipal de Seia (CMS), este festival é ainda desconhecido para muitos. Em conversa com Cláudia Marques Santos, uma das programadoras/curadoras do CineEco, descobrimos um festival com propósito, consolidado, repleto de criatividade, de qualidade e de umas quantas bofetadas de realidade.
A edição de 2023 acontece entre os dias 5 e 13 de outubro, em Seia, é de entrada livre e merece a visita de todos.
Qual é o conceito e os objetivos do festival?
Este festival nasceu há 29 anos, desde sempre dedicado à cultura visual e ao ambiente, com dois objetivos: primeiro, divulgar o cinema na região de Seia, pois esta zona não tem um acesso tão fácil ao cinema como têm os grandes centros urbanos; e, segundo, alertar e sensibilizar para as questões ambientais.
Os objetivos práticos para 2023 e 2024 são focar o festival no cinema e colocá-lo no mapa dos festivais de cinema do País.
Qual é a dinâmica? Como são vividos esses dias em Seia?
São dias sempre muito interessantes. Para já, porque estamos rodeados pela serra e é um festival que nos dá tempo para desfrutar dela. Aliás, diria que este é um terceiro objetivo do festival, ainda que indireto – a convivência com a Natureza e a paisagem. É uma paisagem natural lindíssima com trilhos que podemos percorrer… Há sempre atividades paralelas ligadas a isto, para podermos usufruir desta nuvem de oxigénio, para podermos viver aquele lugar.
A vida do festival é esta: uma pequena comunidade que à saída dos filmes fala sobre eles, que se (re)encontra pelas ruas, em cafés, nos bares… Como a cidade é pequena, as pessoas acabam por se encontrar naturalmente e acaba por se criar uma comunidade que gosta de falar sobre cinema e ambiente. E as pessoas dão-se sempre bem.
Quais são os maiores desafios de produzir um festival exclusivamente ambiental em Portugal, sobretudo no interior?
O grande desafio é levar pessoas lá, pessoas que não são de lá, como já acontece noutros grandes festivais, por exemplo, o Festival de Curtas de Vila do Conde. Queremos levar o público de fora da região a Seia e levar cada vez mais pessoas da região a participar nas sessões.
E os realizadores já vos conhecem, já chegam naturalmente até vocês?
Ao nível de realizadores e produtores, acho que já há bastante participação, quer nacional quer internacional. Eles já nos conhecem; o festival já faz parte do circuito.
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Como são selecionadas as obras?
Este festival contempla competições e extracompetições. As competições dividem-se nas longas internacionais, longas nacionais, curtas internacionais, curtas nacionais e o panorama regional. Neste último surgem filmes que retratam de alguma forma o habitat da Serra da Estrela.
Este ano concorreram cerca de 300 filmes de 27 países, dos quais foram selecionados 66.
A seleção das obras tem vários critérios; o principal é a qualidade da obra. Pretende-se um bom filme em termos de narrativa (como é contado) e em termos formais (se está bem filmado, bem montado, etc.). Devo dizer que não temos recebido maus filmes em termos formais; todos têm um patamar mínimo de qualidade. Às vezes o difícil é escolher e aí o critério estará sempre relacionado com a temática e, havendo uma temática comum sobre ambiente, teremos que ir às subtemáticas mais gritantes ou mais urgentes sobre as quais devemos falar.
Qual foi a obra cinematográfica que mais a marcou ao longo das edições do CineEco?
Não diria um filme, mas uma temática – a desmatação da floresta amazónica. São filmes sul-americanos que abordam coisas seríssimas. Arrasam com a floresta, criam diques e alagamentos, levam aldeias inteiras a serem expropriadas dos sítios onde estão… E as populações tentam travar a água, mas são confrontadas por pessoas armadas. Os indígenas fazem inúmeras tentativas de divulgar e denunciar… São coisas seríssimas, perigosas mesmo. Há risco de vida, tanto das pessoas locais como dos realizadores. Isto para a nossa realidade é impensável, mas isto existe. São pessoas que desesperam por ter o seu espaço, a sua água, a sua floresta que tanto respeitam. E respeitam devido à convivência em pleno e porque ela é a sua subsistência, só não é uma subsistência à custa do abate de árvores.
O que podemos esperar da edição de 2023?
Teremos dois momentos altos extracompetição que acontecem logo no dia 5. A Cinemateca Portuguesa tem um projeto com outros países europeus que se chama FILMar, ligado à recolha de pequenos filmes ligados ao mar e à paisagem. Em parceria com a CMS, serão transmitidos seis deles, por exemplo, Mata do Bussaco, de Hans Berge (1919), que esteve perdido na Biblioteca Nacional da Noruega até há muito pouco tempo e que a biblioteca doou à Cinemateca para este projeto. Estes filmes serão transmitidos em cineconcerto, ou seja, são filmes mudos que serão musicados pelo pianista Filipe Raposo em tempo real. Algumas são composições dele que já existiam e há uma composição nova feita especificamente para este projeto.
Outra novidade é a projeção do filme de Paulo Rocha Verdes anos, que faz 60 anos. Pela primeira vez será mostrado ao mesmo tempo que o filme Onde fica esta rua ou sem antes nem depois?, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (2022), filmado durante a pandemia nas mesmas ruas filmadas por Paulo Rocha. Esta sessão dupla mostra a simbiose entre as avenidas novas de Lisboa em construção, hoje movimentadíssimas e que durante a pandemia estavam vazias. Vão estar presentes tanto os realizadores como a atriz Isabel Ruth.
Vamos ter também duas exposições, uma sobre a FILMar e outra Fogo frio – Prevenir o incêndio usando o fogo, de Conceição Colaço, e tertúlias, um espaço próprio onde o público pode conversar com os realizadores enquanto bebe um chá ou um copo de vinho. E depois as festas de encerramento.
Ressalvar que existe programação específica para escolas.
Quais serão as temáticas abordadas?
De forma geral, a questão do carvão e da mineração, os produtos transgénicos, a paisagem (este é um tema recorrente), o agronegócio, os rios. Depois, coisas mais distópicas como a extinção ou o fim da nossa existência devido à queda de chuva ácida. Fala-se do paralelismo entre maternidade e Natureza. Haverá ainda alguns filmes mais conceptuais ou poéticos.
As obras portuguesas costumam focar algum tema específico?
A paisagem. A paisagem e as culturas, modos, comunidades que começam a ser residuais: pequenas aldeias onde ainda resistem algumas pessoas de terceira idade, alguns saber-fazer, artesanato e modos de produção antigos. Há muito esse documentar destas profissões, saberes e lugares em extinção. Também o mar.
Que temáticas gostaria de ver um dia contempladas na programação?
As temáticas já são muito abrangentes. Não só em termos de temáticas mas de pontos do mundo. Temos filmes a vir da Rússia, EUA, América do Sul, Coreia do Sul, Japão… Além disso, também temos abordagens muito abrangentes desde ficção científica a documentários, filmes de animação, etc. Eu pessoalmente gosto de ver filmes mais conceptuais porque há qualquer coisa que mexe connosco, vai para lá do racional e é bom o nosso corpo sentir.
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