O Daniel é a voz deste jardim que verte simplicidade plantada em vasos e canteiros; a explicação sobre a sua dedicação ao jardim e ao campo transformou-se numa inspiração que merece ser partilhada.
A descrição com sabor queirosiano, escrita na íntegra pelo jovem cuidador do jardim que visitámos, cuja paixão pela Natureza tão bem afirma na força das palavras que compõem este texto, obrigou-me a dar-lhe amplo lugar como autor deste artigo. O Daniel é a voz deste jardim que verte simplicidade plantada em vasos e canteiros, o corpo na valorização da harmonia que reflete de si mesmo, conjugando tudo o que nele encontramos, e, sobretudo, a composição poética da mensagem que muito importa anunciar: a explicação sobre a sua dedicação ao jardim e ao campo transformou-se numa inspiração que deve ser partilhada.
Costumo descrever jardins em artigos breves, neles cultivando opiniões de estética literária sempre que algum surja como forte motivo que me impulse a moldar a narrativa de jardinagem, porque não me limito a percorrer tecnicamente um jardim. A mensagem muda que alguns jardins guardam revela-se quando o seu mentor se faz escutar com as extraordinárias impressões vivas que encantam, e o entusiasmo manda-me compartir a experiência.
«Na região vinhateira de Alenquer, num dos lugares que povoam o vale de Palhacana, procuramos uma casa com portadas verdes e uma Monstera deliciosa no alpendre, com a indicação de tocar o sino à chegada. No exterior, o fúchsia das buganvílias sobressai sobre o branco das paredes que ladeiam a entrada num quintal sobrevoado por andorinhas que num vaivém intermitente trazem alimento aos ninhos a que anualmente regressam. Na família há seis gerações, iniciou-se na última década uma abordagem de regeneração da casa como um todo, nas suas vertentes urbana e rústica, como jardim simbólica e fisicamente na transição entre ambas.»
História
O jardim insere-se no interior de uma pequena propriedade que outrora fora uma quinta da nobreza do século XVI, de que ainda apresenta a pedra de armas na fachada da casa, sobrevivente aos danos causados pelo Terramoto de 1755 e pelas invasões francesas no início do século seguinte, que levaram à fuga definitiva para a capital da família que então a havia periodicamente habitado ao longo de mais de dois séculos.
Fruto desse abandono, é na década de 70 do século XIX que os antepassados dos atuais proprietários começam a habitá-la. Na década de 50, passou por um processo de partilhas extenso que levou à divisão do seu núcleo principal, que teve como resultado a expansão do casario sobre o antigo espaço de hortas a poente do primitivo quintal, com a construção de novas dependências agrícolas. Foi entre duas dessas dependências que na década de 60 se construiu um pequeno jardim fechado, que, de certo modo, se assemelha a um claustro, rodeado de paredes e muros caiados de branco que sobressaem sobre a vegetação.
Leia também:
O jardim
Aninhado a nascente e poente pelas paredes de dois celeiros, a sul com um muro rematado por pilares nos quais assenta uma latada que corre ao seu comprimento e a norte com um murete mais baixo que abre para o vale sobreo qual tem vista privilegiada, o ambiente do jardim resulta num espaço protegido no qual os troncos das árvores e a cobertura do piso se revestem de líquenes e musgos, que na época seca se regeneram com as primeiras chuvas. O jardim foi desenhado em redor de uma grande nogueira, testemunho do antigo espaço de horta integrado num dos pequenos terraplenos, funcionando como elemento central em torno do qual se agrupam vários espaços. A entrada faz-se por uma cancela de madeira, um de vários portões de diferentes tamanhos que deitam para os quintais, construídos in loco com madeira de carvalho proveniente dos terrenos da casa, cada um com sua tramela e modo de abertura, cuja longevidade assenta mais na origem da madeira do que na sua manutenção.
Adjacente à entrada do jardim, ao longo da parede a nascente, corre um alegrete densamente plantado com uma profusão de plantas anuais intercaladas com roseiras que, pela sua altura mais elevada, permite observar ao nível do olharas flores que aí vão surgindo ao longo de todo o ano, começando com os jacintos em janeiro e terminando com as roseiras que florescem até ao inverno. Este murete cruza a sul com a latada, por entre cujos pilares brancos que se erguem do verde de musgos e fetos, avistando-se um pomar murado que agora serve de recreio a um bando de galinhas pedreses. O alegrete e a latada envolvem um pequeno terraço retangular as soalhado em torno do qual se agrupam vasos de barro com buxos e fúchsias, e adjacente encontra-se o terrapleno com a grande nogueira. Sob a sua copa, feixes de fetos rodeiam uma mesa-redonda, que tem por tampo uma mó de pedra proveniente de uma azenha outrora integrada na quinta, onde se agrupam cadeiras de ferro pintadas de branco cujos esses que as compõem se elevam por entre a vegetação num belo contraste de cor e formas.
A norte, interrompido pela pequena rua central, o outro terrapleno, de dimensões mais reduzidas e com uma nogueira de menores dimensões, plantado com uma mistura de plantas perenes e anuais, que garantem interesse ao longo de todo o ano. As delicadas e melíferas flores do marmeleiro ornamental, que ao longo do inverno são um chamariz para as abelhas, dão lugar às rosas e aos lírios que se vão sucedendo em ondas de diversas tonalidades e aromas ao longo dos meses seguintes.
As roseiras vêm tendo uma representação cada vez maior no jardim, principalmente roseiras antigas, uma tendência resultante de longas caminhadas por paisagens rurais durante o confinamento de 2020, em que a observação de roseiras em várias ruínas que, por entre as adversidades do abandono, persistiam em apresentar ténues botões florais provaram a sua enorme resistência, e motivou o regresso nos meses de inverno para colheita de estacas. Já no jardim, em condições mais favoráveis, proliferam e florescem com as fragrantes massas de botões florais características das roseiras antigas.
O jardim como parte da casa
A partir da primavera e pelo verão adentro até ao fim do outono, o jardim constitui uma divisão da casa, tendo cancelas ao invés de portas e as copas das árvores por tetos – um espaço de lazer, de atividade criativa ou de trabalho, lugar de retiro e de contemplação do vale. Ao fundo, por entre vinhas e pequenos bosques, o vale é rematado por um monte de contornos suaves no qual se localiza a igreja paroquial, solitária entre quintas e vinhedos, com suas barras e pilastras avermelhadas a comunicar com o óxido de ferro deste jardim em frente, e ambas com a profusão de tons avermelhados dos vinhedos no outono.
O jardim constitui um espaço colaborativo e de memória, estando as duas dimensões profundamente interligadas: colaborativo pelo presente desempenho coletivo entre familiares e amigos nas tarefas necessárias à sua manutenção e constante evolução, mas também entre várias gerações que foram deixando a sua marca, imprimindo nele essa componente da memória.
Embora este pequeno hortus conclusus constitua na definição mais formal o jardim da casa, existem inúmeros outros espaços que com ele comunicam e que, pelos diferentes níveis de jardinação ou pelo carácter de recreio e fruição, aliados a fins utilitários de acordo com a filosofia da quinta de recreio portuguesa, também se podem considerar jardins.
A filosofia da quinta de recreio portuguesa
Nesse sentido, desde o portão de ferro da entrada principal e atravessando os dois quintais onde crescem várias plantas treinadas como trepadeiras sobrepostas com vasos de barro plantados com sardinheiras de várias cores, segue paralelo ao muro baixo do jardim um caminho que vai descendo para poente entre os campos, ladeado por ciprestes ainda jovens e outras árvores de fruto, e que já nos campos uma sucessão de três socalcos de formação natural obriga a curvar antes de entroncar como regato que atravessa o vale. Estes socalcos, ligados entre si por escadas escavadas no solo, constituem miradouros naturais por onde se avistam os campos e todo o vale em redor. Os dois primeiros socalcos, onde crescem variedades antigas de pereiras e macieiras, servem também de hortas. No terceiro socalco, em cota inferior e resguardado da nortada por um talude natural, localiza-se o laranjal da casa, cujos muros de contenção e uma conversadeira junto a um poço testemunham ainda o carácter de recreio.
Ao fundo do caminho junto ao regato, uma ponte de madeira assente em dois pontões de pedra seca faz a ligação a uma horta do outro lado da margem. Sobre a ponte ouve-se o rumorejar da água por entre as pedras e pequenas cascatas, harmonizando com o chilrear dos pássaros no alto das copas de exemplares adultos de choupos e freixos. Diz-se de uma antepassada que por ocasião da perda de uma filha aqui frequentemente a vinham encontrar, observando e escutando a água que passa, nessa atitude contemplativa encontrando a paz possível, no tempo em que homens e mulheres atravessavam uma outra ponte no mesmo lugar, num trânsito antigo que dos campos levava as colheitas de pomares e vinhas até aos celeiros e adegas da casa.
Faz parte da filosofia da casa a preservação de objetos e saberes tradicionais, numa ótica não meramente museológica mas de utilidade aliada à sustentabilidade, de que são exemplos ouso da cal, a adaptação de antigas camas de ferro a bancos de jardim, a manufatura do suporte do sino que serve de campainha à entrada, desenhado para corresponder aos esses do antigo portão de ferro adjacente, e feito recentemente na oficina da casa com métodos tradicionais de martelar e cravar o ferro; a manufatura de cabos para antigos instrumentos agrícolas, tais como enxadas, a partir de árvores da propriedade, ou o uso da madeira para outros fins – este ano, por exemplo, restaurou-se a estrutura da latada com troncos provenientes da recuperação deum dos campos; ou ainda o uso de cestos de vime na colheita de frutos ou vegetais, feitos de vimes provenientes de vimeiros que outrora povoavam as margens de linhas de águas e que foram reintroduzidos na propriedade a partir deum único espécime identificado nas proximidades. Tal como os vimeiros, muitas das árvores e arbustos semeados ou plantados por estaca provêm de exemplares locais, numa atitude de preservação de património genético, de que também são exemplo o bando de galinhas pedreses ou a seara de trigo-barbela.
Nos últimos anos, a propriedade entrou num processo de regeneração em modo orgânico com o âmbito de lhe restituir a completude de outros tempos. Muitos espaços esquecidos têm sido resgatados com tenacidade ao caos do abandono. Recuperam-se bosquetes, onde novas árvores autóctones têm sido plantadas. Velhas sebes têm sido recuperadas e outras criadas, com plantação de árvores e arbustos e incorporação de muitas plantas espontâneas, perenes e anuais. Há quatro anos cultivou-se o primeiro horto, em modo de produção biológica, e há dois anos chegaram as primeiras galinhas de raça pedrês, das quais já aqui nasceram quatro novas gerações. No último ano, em colaboração com uma quinta vizinha, produziu-se o primeiro lote de azeite em modo orgânico e recuperaram-se alguns dos campos, num dos quais este anos e fez uma seara de trigo-barbela, retomando um ciclo no qual o trigo proveniente dos campos será transformado em pão em fornos alimentados com lenha proveniente dos pequenos bosquetes da casa. Pedras espalhadas por toda a propriedade têm sido recolhidas e utilizadas na (re)construção de muros de suporte e de delimitação de campos, que, protegendo do vento e da erosão, servem de abrigo aos muitos insetos cuja variedade e quantidade tem sido promovida pela gestão orgânica dos campos.
Leia também:
Texto de Nuno Prates e Daniel Inácio. Fotografias de Daniel Inácio, Nuno Prates e Teresa Chambel.
Gostou deste artigo? Então leia a nossa Revista, subscreva o canal da Jardins no Youtube, e siga-nos no Facebook, Instagram e Pinterest.