A caminho do pinhal, lá estava ele, solitário e sereno, grandioso, algo curvado pelo peso dos anos ou do céu, muito quieto na hora do pôr do sol.
No primeiro confinamento, a senhora que partilha comigo a guarda da minha mãe apanhou covid e ficou em casa o mês inteiro de fevereiro. Fiquei eu a cuidar da minha mãe 24 horas por dia durante nessa altura. A senhora minha mãe, que tem agora 89 anos e alguma demência, tem algo que não dispensa, haja ou não recolher obrigatório: passear de carro, se possível a tarde inteira com umas paragens à beira-mar, sempre sentada num banco a comentar o tamanho das ondas e estranhando a ausência de pessoas e os carros de polícia a repetirem “Fique em casa, fique em casa”.
Eu tentava pedir aos polícias que nos mandavam para casa com megafones que por favor abrissem umas exceções, que a minha mãe precisa de rotinas e isto de ver o mar todos os dias faz parte da rotina dela. Não houve exceções e, portanto, fui obrigada a procurar outra paisagem onde o olhar da minha mãe e também o meu pousasse e repousasse. Encontrei um pinhal de bonitos pinheiros-mansos, com a copa quase a tocar no solo, o mar ao longe embalando o horizonte e um tapete de brancas margaridas cobrindo a terra entre musgos, fetos, tanchagens e trevos. Um bom lugar para respirar silêncio, contemplar o despertar das flores e fugir aos megafones da polícia, desobedecendo às regras do “Fique em casa”.
A minha mãe não gostou muito, faltavam-lhe as pessoas para animar a paisagem. A mim, bastava-me este lugar sereno. No entanto, houve outro elemento deste percurso até ao pinhal que me seduziu e encantou, que me inspirou e me obrigou a um olhar ainda mais pausado e atento… deixei-me seduzir e encantar por um pinheiro solitário. A caminho do pinhal, lá estava ele, solitário e sereno, grandioso, algo curvado pelo peso dos anos ou do céu, muito quieto na hora do pôr do sol. Visitei-o e fotografei-o quase todos os dias durante dois meses, fevereiro e março.
Para chegar a ele tinha de atravessar um portal num muro de pedra, daqueles que já ninguém sabe construir, o muro era acompanhado em toda a sua longitude por uma enorme diversidade de plantas que fui vendo crescer e florir, eram principalmente abrunhos-silvestres Prunus spinosa que se foram cobrindo, os espinhos e os ramos escuros, de um verdadeiro manto branco e delicado, de perfume suave a iluminar o caminho e as noites ainda longas. Além destes arbustos havia também madressilvas, funcho, arruda, murta, tojos, espargos, cardos, urzes, azinheiras. Tudo boas escolhas, de plantas autóctones e resistentes para reproduzirmos nos nossos jardins a biodiversidade silvestre e assim assegurarmos a sua conservação.
Passado o portal, tinha de atravessar um campo que muitas vezes estava um pouco pantanoso e, nesses dias (sim, porque o ano passado nesta altura choveu) ou ia de galochas ou ficava a acenar-lhe à distância de um prado alagado e a fotografar a sua quietude contagiosa enquanto o céu se incendiava e o sol espreitava entre ramos e jovens pinhas. E eu clique, clique, clique até que a luz se acabasse. Frustrava-me um pouco não ter iluminação suficiente para registar com a mesma clareza o desabrochar daquele prado à volta do pinheiro; iam surgindo echium (soagem), também conhecida por erva-viperina, meliloto, delicadas flores de linho, calêndulas, trevos e abelhas que por lá começavam a aparecer namorando os trevos de flores brancas (Trifolium repens) e cor-de-rosa (Trifolium arvensis), já embriagadas e fartas de tanto pólen de Prunus, sabia bem comida nova, novos néctares, novas cores, sabores variados para oferecerem à rainha que esperava paciente no aconchego da colmeia.
É bom não esquecer que para começar um prado basta um trevo e uma abelha. De dia para dia, iam aparecendo novas plantas no prado e no muro, novas nuvens no céu, novas cores no horizonte. De dia para dia, a luz crescia, alongando o tempo de claridade, demorando a dança do sol entre as agulhas do pinheiro. Ao fim do dia, o pinheiro parecia inclinar-se para ouvir melhor o zumbido das abelhas a seus pés, dobrando-se devagarinho como se um invisível manto de nuvens o aconchegasse ao entardecer e o deitasse a dormir entre flores e terra fresca. Divagações de quem tem tempo para observar e interpretar a paisagem.
Obrigada, pandemia. Obrigada, mãe, por gostar de andar na rua. Obrigada, Natureza, por tanta abundância, beleza e serenidade. Obrigada, pinheiro, por seres tão manso e sereno, criando harmonia, folhas em forma de agulha e pequenas pinhas que me vais oferecendo para os meus chás e xaropes de inverno. Sentir gratidão ajuda-nos a respirar melhor e a caminhar mais leves. Gratidão aos leitores que me vão lendo.