Não quis deixar de homenagear os cravos nesta revista de jardinagem onde já escrevo há mais de 20 anos e onde nunca politizei a jardinagem.
Abril é o mês dos cravos. Os cravos simbolizam a libertação de 48 anos de ditadura. Temos uma flor como símbolo de uma revolução que se fez sem sangue; o vermelho que se via nas ruas era de pétalas e não de seiva humana. Nas comemorações dos 50 anos desta nossa transição de um regime opressor para uma sociedade democrática e com liberdade de expressão, faz todo o sentido vir aqui contar-vos algumas histórias de cravos.
Faz sentido também porque essa foi a primeira planta de que cuidei, que plantei de estaca num canteiro improvisado feito com a habilidade de uma criança de 10 anos que já sabia que o seu futuro ia ser entre plantas.
Agora com 64, lembro-me como se fosse hoje, da primeira vez que fiquei à espera que um botão de flor se rasgasse abrindo uma pequena fissura no tecido verde daquela cápsula, onde, embrulhadinhas, enroscadas e aconchegadas estavam todas as pétalas que foram pouco a pouco desabrochando num vermelho-vivo e perfumado, depois veio outra e mais outra. Mal sabia eu que essa seria a flor que a dona Celeste Caeiro, tornando-se por isso famosa, iria distribuir pelos soldados de abril que logo as foram colocando nos canos das suas espingardas, eternizando assim a ligação dos cravos com a revolução portuguesa.
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Produção de cravos
Hoje fui visitar uma pequena produção de cravos perto de Sintra. Senti-lhes o perfume intenso e toda a memória vívida dessa pré-adolescência a brincar como jardineira com plantas de verdade tomou-me de assalto, invadiu-me os sentidos todos e de repente vi-me de novo pequenina, fascinada, como ainda hoje continuo com o desabrochar das flores, com os aromas que conseguem produzir. Como? Porquê? Para quê?
Tudo era mistério e maravilhamento. Hoje, tenho algumas respostas, mas isso não é importante. Importante é a continuação deste deslumbramento.
E, a propósito dos benefícios de proporcionar às crianças experiências onde possam sentir esse encanto, essa magia pelos fenómenos da Natureza, partilho aqui uma pequena grande frase do livro que acabei ontem de ler de Rachel Carson, sim, essa mesma, a autora de Primavera Silenciosa, um livro de 1955 que veio abrir caminho para todo o pensamento ecológico da atualidade. Este livro que li quase de uma lufada, The Sense of Wonder, é de leitura poética e inspiradora e belas fotografias de Nick Kelsh. Foi publicado depois da sua morte e foi todo ele dedicado ao seu sobrinho-neto que com ela partilhou belíssimos momentos de contacto com a Natureza. Todo ele flui leve e delicado e nos transporta aos lugares que ela descreve.
Como gosto de sublinhar livros, aqui vai uma tosca tradução:
“Pudesse eu influenciar a boa fada-madrinha que preside aos batismos das crianças, pedir-lhe-ia que todas as crianças do mundo fossem dotadas de um indestrutível poder de maravilhamento que lhes durasse para a vida inteira e lhes servisse de infalível antídoto contra o aborrecimento e o desencantamento de anos vindouros, contra a estéril preocupação com o que é artificial, contra a alienação em relação às verdadeiras fontes da nossa força.”
Li e imediatamente o relacionei com algo que eu própria muitas vezes escrevo nas notas biográficas dos meus livros: “Gostaria de que os meus livros fossem como varinhas de condão, capazes de abrir portas a uma relação mais íntima entre os leitores e o verde que nos rodeia”.
O fascínio dos cravos
Voltando ao fascínio dos cravos. Alguns factos sobre eles:
- Os cravos (Dianthus caryophyllus) são uma das plantas da família das Cariofiláceas que se cultivam há mais tempo, pelo seu perfume maravilhoso, pela multiplicidade das suas cores e pela sua facilidade de cultivo, sendo por estas razões uma das flores de corte mais apreciadas no mundo inteiro há mais de 2000 anos.
- Os cravos são originários do sul da Europa e da Ásia e plantados um pouco por todo o mundo. Existem cerca de 300 espécies destas plantas perenes. As flores são hermafroditas, o que significa que na mesma flor encontramos os órgãos reprodutores femininos e masculinos e são polinizadas principalmente por abelhas e borboletas. As variedades mais comuns são o Dianthus caryophyllus e D. su-perbus. O D. barbatus é a cravina. O D. chinensis, planta anual, cor-de-rosa e muito aromática, é a variedade mais utilizada na MTC (medicina tradicional chinesa). Colhem os botões florais e algumas folhas que mais tarde usarão já desidratadas.
- Usam-nos no tratamento da ansiedade, como energizante e como desparasitante intestinal. Os Astecas usavam os cravos em infusões no tratamento de problemas urinários e respiratórios. Na Pharmacopoeia Londinensis, uma importante publicação de 1618 do College of Physicians sobre medicamentos e seus ingredientes, o cravo era uma das plantas recomendadas como tónico amargo em cordeais (espécie de xarope açucarado) e bebidas quentes para combater febres, infeções e pestilências. Noutros países da Europa era usada uma infusão de cravos para tratar problemas nervosos, cansaço, dores de estômago, problemas hepáticos, parasitas intestinais e enjoos. Como elixar bucal, usava-se tradicionalmente no alívio de dores de dentes, infeções das gengivas e da garganta e conjuntivites.
- O óleo de cravo era ainda utilizado para tratar problemas de pele, como cicatrizante de feridas e para o bom funcionamento da memória. Os óleos voláteis presentes nas flores e folhas têm propriedades antimicrobianas, ajudando a combater infeções de origem viral, bacteriana ou fúngica. O composto mais ativo no óleo volátil é o timol, um dos principais constituintes do tomilho, e o eugenol, também presente no cravinho. Na Coreia, no Japão e na China usa-se para melhorar o funcionamento do aparelho digestivo.
- O nome Dianthus foi-lhe dado pelo pai da botânica da Grécia Antiga, Teofrasto, e deriva da palavra theos que significa deus e eanthos que significa flor, portanto os cravos seriam flores de deus. Já na era cristã estes passaram a estar associados à Virgem Maria, sendo comummente representados nas pinturas a partir do século XIII.
As suas flores são comestíveis, tal como as cravinas, frescas ou desidratadas, têm um sabor a especiarias e são levemente apimentadas, combinando bem com pratos de peixe, molhos, pão, sopas, sobremesas ou geleias.
A pequena produção caseira que fui visitar perto de Sintra será para uma experiência de fabrico de cerveja artesanal que vou com certeza querer provar. As sementes utilizadas e que foram colocadas na terra em setembro são de origem biológica da empresa Sementes de Portugal e acho que os cravos que hoje cheirei destronaram a flor de laranjeira no ranking dos meus aromas botânicos favoritos. Um perfume com a combinação de ambos e umas gotas de esteva talvez resultasse numa interessante combinação. Fica lançado o desafio aos perfumistas.
Quanto ao simbolismo dos cravos, imaginemos a pomba da paz levando no bico um cravo vermelho, espalhando valores democráticos aos quatro cantos do mundo.
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