Fazer um jardim é tentar contar uma história por intermédio das plantas.
Depois, é o jardim que nos segreda as narrativas e, acima de tudo, atesta a verdade daquilo que quisemos deixar contado. Há não muito tempo, quando encontrei a disposição que aos meus olhos pareceu certa, tive de me questionar sobre que jardim era este. Dei por mim a concluir que só faria sentido defini-lo como uma carta de amor e, explicarei mais adiante, com palavras, o que sempre foi para ser lido sem legendagem.
Necessito encontrar dentro de mim o impulso para realizar tudo aquilo a que me proponho fazer, seja um jardim, cozinhar ou escrever. A planta certa, o ingrediente, a palavra. Formas, cores, sabores e melodias dão norte a ações que, por seu turno, ganham uma vida partilhável.
Estes elementos são minudências, claro deve ficar. Afinal, a verdadeira razão que a tudo antecede, e o resultado determina, é a intenção de partilhar. Ah, mas isso é inspiração, poderão pensar. Talvez, apesar de a inspiração nada servir sem o objetivo de partilhar. Sejam quais forem as palavras, tudo isto torna o ato de criar algo muito frágil, deixando brancas as páginas e murchas as folhas, quando se nos escapam as musas – até que regressem.
Não escrevo para mim além de uma pequena lista; ser o degustador único de um prato faz-me esquecer a mestria de temperar a olho e, claro, onde deixo uma planta não é acidental; há sempre um sítio certo para que viva e a nossa vista alcance e apreenda. Afinal, faz tudo parte de um texto maior, e este jardim é uma carta da qual temos de falar.
O encanto duma carta nesta linguagem é que não é para ser lida pelo destinatário como quem lê este texto, nem deve carecer da mente consciente para significar tanto. É entregue todos os dias, sem uma estrutura reconhecível, apenas o significado do empenho, cuidado, dedicação, beleza e amor. Tudo oferecido. Sempre ali, vivo e nutrido, ao acesso dos olhos, a puxar-nos para o campo, apesar de fora do retângulo ser esmagadora a vertigem da cidade de Lisboa. Uma vez lá, sentamo-nos num abraço de muitas cores, que nos ligam à terra e rasgam o céu.
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Como nas relações, há movimento; tudo muda com as estações e as variáveis a que a rua sujeita quem nela está. As mudanças embatem no âmago do que vive sempre sem matar, adulteram-se os pigmentos, folhas caem, plantas aparentemente morrem, para rebentar com mais força. O olhar próximo dota-nos da capacidade de ler a Natureza, também a humana. E daqui brota toda a fé que um ateu se possa permitir ter, na vida e nas pessoas.
Talvez por tudo isto até se possa arriscar dizer que um jardim é como o amor. E não há que ter medo de aceitarmos estas conclusões se é isso que sentimos e observamos. Bom seria que todos nos pudéssemos aproximar o suficiente da Natureza para o ver.
Como nasceu este jardim
Deste jardim não há projeto nem rabiscos; foi-se construindo, como a vida que lhe deu origem. Juntaram-se as plantas de duas pessoas. De dentro de uma casa começaram a sair para a varanda, até que a varanda já não lhes bastava. Por essa altura, vieram ter a este pátio outrora esterilizado pelo betão. Daí até aqui, foi aceitar as plantas que vieram ter connosco: as oferecidas, as encontradas, as trocadas e as desejadas.
E agora o betão vive, através dos vasos que carregam mais de 140 plantas e de quem o pisa para conviver e se abraçar. Até a harmonia que agora se sente desarrumou-se e experimentou-se muito.
Nos meses de inverno, o sol não toca diretamente com os seus raios. Custa-nos mais a nós do que às plantas. As abelhas e joaninhas aqui continuam a encontrar abrigo e os pássaros não se inibem de nos visitar. Mas é à medida que março avança que a luz volta a entrar. As folhas novas anunciam-se com timidez, os pássaros perdem a vergonha de esgravatar na terra. Que deliciosos deverão ser os bichos que dela puxam. Não se incomodam com o desarrumar do pátio. Incomodei-me momentaneamente, até perceber que me estavam a fazer um favor, a convidar-me a cuidar todos os dias de algo que importa.
Não serviram apenas para entregar cartas em tempos idos, eles entendem a estrutura de uma carta de amor, cuidar todos os dias – mesmo que se desarrumem os sítios e as palavras.
Diferentes cantos invocam diferentes paisagens, memórias nossas e outras que devem pertencer às plantas, aos sítios tão vastos donde descendem. Todo e qualquer jardim, mais ou menos cuidado ou pensado, serve de laboratório, oferecendo não só histórias como aulas de botânica.
Claro que não só de amor vive a inspiração para criar num jardim. A incidência da luz é um critério marcante. Há objetos que nos forçam a desbravar caminho, criando novos lugares, como o chuveiro que carrega uma história de desconhecidos, com dois séculos.
Só faz jardins quem ama o silêncio, mas não tolera a solidão. Quem cuida de plantas quer que vivam para sempre. E se há algo nos dizem é que não devemos temer o tempo, pelo contrário, deveríamos ter ânsia de o viver. É o tempo que agarra raízes ao chão, aproxima as plantas
dos que usam o ar para navegar e, acima de tudo, abraça-nos, ora com mais sombra, ora deixando passar a luz.
Pouco fica para além das pessoas que amamos e das plantas que escolhemos cuidar. Ao mesmo tempo, preparamo-nos para dizer adeus ao jardim e à história nele contida, certos de que nada disso importa, afinal ficará connosco seja qual for a morada. Que possamos ser-nos tão boa companhia, continuando o que estas plantas serviram para contar. E que os pássaros cantem, como suposto e nada mudasse.
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