Arte e botânica, uma perspetiva material

 

Conheça algumas matérias-primas vegetais utilizadas na execução de obras de arte.

 

As sociedades humanas evoluíram alicerçando-se na disponibilidade de recursos vegetais, seja para alimentação, que é, porventura, o nosso primordial fator de estabilidade, seja para outros fins, por exemplo, medicina, construção ou vestuário. Desde os alvores da civilização que o fluxo contínuo de matérias-primas e a sua distribuição equitativa é imprescindível para a estabilidade das sociedades e para a sua perenidade.

A divisão das atividades que, provavelmente, teve origem nos inícios da História humana, ditou que alguns grupos se dedicassem a ofícios protoartísticos que tinham necessidade de produtos de origem orgânica (ossos, carvão, madeira) ou mineral (pigmentos, minerais, rochas) para executar obras de arte. A evolução da arte e a sua progressiva complexidade fizeram com que se recorresse a um número crescente de matérias-primas de origem vegetal que, atualmente, enobrecem a relação entre plantas e humanos.

 

Tinta ferrogálica

A tinta ferrogálica, com a qual os europeus escreveram entre o século V e o século XIX e que ainda se fabrica, é feita com bugalhos (fonte de taninos) [os bugalhos são tumores benignos que surgem nos ramos dos carvalhos nos quais foram depositados ovos de insetos], sulfato de ferro, água (solvente) e goma arábica (agente espessante). Foi com esta tinta que Leonardo da Vinci escreveu as suas notas e Johann Sebastian Bach compôs a sua música.

 

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Grafite

Cedro-da-califórnia (Calocedrus decurrens)

Cedro-da-califórnia (Calocedrus decurrens)

A descoberta de jazidas de grafite (uma forma alotrópica de carbono), em Borrowdale (Inglaterra), em meados do século XVI, marcou o início da história dos lápis contemporâneos, embora a sua produção tenha começado, em Nuremberga, apenas no século seguinte. A Alemanha ainda mantém empresas centenárias que fabricam lápis de elevada qualidade, como a Faber-Castell (1761) e a Steadtler (1835); no nosso País, a Viarco, sediada em São João da Madeira, produz lápis desde 1907. Embora a grafite seja um mineral e não derive de plantas, a estrutura que a envolve, no lápis, é de origem vegetal: cedro-da-califórnia (Calocedrus decurrens), escolhido pela sua madeira suave, resistente e aromática.

 

Laca animal, calcário, terebentina e cochinilha são os ingredientes do lacre que, no passado, se usava para selar cartas.

 

Borracha

borracha

Planta-da-borracha (Hevea brasiliensis)

As borrachas, sempre associadas ao uso dos lápis, podem ser manufaturadas recorrendo a compostos de origem sintética, mas o seu fabrico tradicional usa o látex da planta-da-borracha (Hevea brasiliensis). Esta espécie é nativa da Amazónia, onde a borracha foi sempre recolhida a partir de exemplares silvestres, por seringueiros que percorriam a floresta [A Selva (1930), de Ferreira de Castro, retrata as vicissitudes desta atividade]. Não era possível estabelecer plantações de árvore-da-borracha na Amazónia devido às pragas e às doenças que atacavam as árvores, quando estas cresciam em monocultura. Os lucros do comércio da borracha eram tão elevados que permitiram contruir um teatro de ópera em Manaus (Teatro Amazonas) com materiais e técnicos recrutados na Europa, quando o acesso a esta cidade isolada ainda era feito apenas por via fluvial, subindo o rio Amazonas.

 

Carvão

carvão

Carvão

O carvão para desenho a carvão é obtido pela combustão incompleta de caules de salgueiro e/ou de videira. Esta forma artística é, provavelmente, o mais antigo método de desenho e um dos mais simples, permitindo a criação de obras muito expressivas. Além do carvão, outros pigmentos negros são obtidos a partir da combustão de matéria orgânica, como é o caso dos pigmentos derivados da carbonização dos caroços de pêssego, cereja ou amêndoas e que começaram a ser utilizados na pintura europeia a partir da Renascença [também se utiliza marfim carbonizado]. Estes pigmentos permitem obter negros belíssimos, muito densos e escuros.

 

Madeiras usadas em obras de arte

Quanto à arte que se encontra nos museus de História de arte ou em museus de arte contemporânea, em especial a pintura, ela foi, frequentemente, criada sobre uma matriz vegetal. Por exemplo, os Painéis de São Vicente de Fora, atribuídos ao pintor régio Nuno Gonçalves (c.1420-c.1490), foram pintados sobre madeira de carvalho; o Santo Agostinho, pintado por Piero della Francesca (1415-1492), que, tal como os Painéis de São Vicente, se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga (Lisboa), foi pintado sobre madeira de choupo; a obra São Pedro, de Vasco Fernandes (c. 1475-c.1542), atualmente patente no Museu Grão Vasco (Viseu), foi pintada sobre madeira de castanheiro. Estes são alguns exemplos dos muitos que encontramos em museus portugueses, já que muitas obras foram pintadas sobre madeira ou esculpidas em madeira de buxo, cerejeira, faia, nogueira e pinheiro.

A partir do século XVI, os artistas começaram a preferir pintar sobre tela e não em painéis de madeira, porque a tela permitia criar obras de maior dimensão, era mais fácil de transportar e, se necessário, podia enrolar-se. A tradição de pintar sobre tela terá começado em Veneza, onde a humidade representava um grave problema para a conservação das obras executadas sobre madeira. Inicialmente, as telas foram feitas de cânhamo ou de linho (as de qualidade superior ainda são em linho), mas, atualmente, é muito comum serem feitas a partir de fibras de algodão. 

 

O Teatro Amazonas, um dos mais belos do mundo, foi inaugurado em 1896, numa época em que todas as metrópoles desejavam ter um teatro de ópera e um jardim botânico.

 

Óleos, pigmentos e resinas

Mástique

Mástique

O próprio óleo para pintura a óleo é feito a partir de sementes de linho, embora outras plantas possam ser também utilizadas, como o cártamo, a noz ou a papoila. Os pigmentos utilizados em pintura são maioritariamente de origem sintética ou mineral (terras de Siena, lápis-lazúli, etc.), ao contrário do que ocorre com os vernizes, que são resinas ou óleo-resinas de origem vegetal, como o dâmar e a mástique. Dâmar é o nome atribuído a um conjunto de resinas translúcidas provenientes de árvores tropicais da família Dipterocarpaceae e a mástique é uma resina que provém da ilha de Quios (Grécia), onde é produzida por uma variedade de aroeira (Pistacia lentiscus) que aí encontra condições ecológicas únicas para produzir grande quantidade de resina.

 

A mástique foi usada como mastigatório e o seu nome deriva do grego Mastikhan (ranger os dentes), tal como o verbo mastigar.

 

Gamboge

Gamboge

Gamboge

Pigmento obtido a partir da resina de uma pequena árvore (Garcinia hanburyi) nativa da Indochina (Camboja e gamboge são palavras etimologicamente próximas) era utilizado porque proporcionava um amarelo singular; atualmente está em crescente desuso devido à sua toxicidade e o nome gamboge é atribuído a vários pigmentos amarelos de origem sintética.

A destilação da resina de coníferas (em geral, de pinheiro) permite a obtenção de dois produtos, um sólido (pez-louro) e outro líquido (a terebintina). O nosso País foi, na década de 1970, um dos principais produtores mundiais de resina e de terebintina, e esta atividade contribuiu muito para o fomento da economia florestal da época. A terebintina utiliza-se como solvente, em tintas e vernizes, e o substantivo terebintina tem origem etimológica no nome clássico atribuído ao terebinto (Pistacia terebinthus), que é uma árvore mediterrânea de pequeno porte produtora de resinas das quais, no passado, se obtiveram as primeiras terebintinas. Um outro produto derivado das coníferas é a terebentina-de-veneza, obtida a partir do larício (Larix decidua) e que se utiliza na pintura a óleo para aumentar a flexibilidade, a transparência e o brilho.

 

A laca

A laca, uma secreção com elevada importância cultural e económica no Oriente, pode ter duas origens: vegetal ou animal. A laca de origem animal (também chamada goma-laca ou shellac) é uma secreção produzida por várias espécies de insetos, sendo a mais comum a espécie Kerria lacca. As larvas desta espécie produzem laca com a qual formam câmaras de proteção contra os predadores e aí permanecem durante todo o ciclo de vida. Quando atingem o estado adulto, os machos saem das respetivas câmaras e procuram as câmaras das fêmeas para iniciarem uma nova geração de insetos. A laca de origem vegetal é uma resina obtida da árvore-da-laca (Toxicodendron vernicifluum), nativa da China e da Índia e introduzida no Japão. A resina desta árvore, quando se encontra em estado líquido é muito tóxica, mas, após secar (polimerizar), é inócua. Um objeto lacado pode necessitar de dezenas de operações distintas e, por vezes, mais de 300 camadas de laca, podendo esta ser misturada com ouro ou com outros minerais pulverizados, para lhe alterar a cor; foi com esta laca que se envernizaram os famosos biombos Namban, que descrevem o encontro entre portugueses e japoneses.

 

A discreta, mas decisiva, intervenção das plantas em arte merece ser mais conhecida porque permite enfatizar não só o uso cultural das plantas, mas a importância dos estudos transdisciplinares.

 

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