Um exemplo de esmero e empenho dos proprietários claramente dedicados em mantê-lo irrepreensivelmente cuidado.
Considero que já vi bastantes jardins em Lisboa. Do mesmo modo, considero ter a experiência de conhecer muitíssimo bem os recantos desta cidade, sobretudo quando se trata dos últimos quintais, logradouros, terraços, pátios, terreiros, talhões e até assumidos jardins que escaparam e não foram destruídos ou impermeabilizados para anular chatices, trabalho e preocupações inerentes a quem tem um jardim. Enfim, o vulgar resumo do conceito de jardim (que não o considera privilégio) para os lisboetas.
As áreas verdes que restam na cidade são a oportunidade que os lisboetas veem para aumentar a casa ou inventar anexos onde acumulam monos e tralhas por anos. Raros são os habitantes que hoje em dia e com elevação reinventam o espaço exterior, que, por tradição, era plantado com hortícolas, em jardim. Este é um caso invulgar que me deixou imbuído em esperança. Antes de qualquer opinião sobre o design do jardim onde intervim, fiquei impressionado com a leitura que retive ao observar estarrecido o esmero e empenho dos proprietários claramente dedicados em mantê-lo irrepreensivelmente cuidado durante anos a fio, pude constatar. Poder ver aquele jardim – sublinho – foi um elogio para mim, renovou a minha frágil motivação em acreditar que existem razões para fomentar e defender os jardins
na cidade de Lisboa.
A partir deste preâmbulo comecei entusiasmadíssimo a pensar no pedido que a proprietária me incumbiu de planear. Um pedido aparentemente simples mas que de imediato me apercebi ser afinal profundamente especial; a pouca intervenção teria de ser certeira para que recuperasse a paisagem plantada e existente por meio de introdução cromática, de volumetria e retoques cirúrgicos nos padrões ornamentais ligeiramente tropicais. Perante um espetáculo formal tão bem desenhado pelo autor anterior, a proposta afigurou-se particularmente desafiante e com o peso da responsabilidade de não afetar um trabalho de excelência que se impunha respeitar. Vi-me, então, perante a confluência de dois estilos que as espécies definem. O académico, existente, que retrata o paisagismo do jardim do norte europeu, e o elenco solicitado de espécies tropicais que rompem com esse academismo e que arrojarão a leitura serena característica das escolhas das espécies existentes.
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A intervenção
A monotonia visual das plantas antes da intervenção, ainda que assegurasse elegância ao jardim, teria de ser interrompida com a voz e luz que os padrões e tons vibrantes das espécies tropicais sabem impor. A seleção de espécies tropicais a introduzir foi estudada com muito pormenor para enaltecer o enquadramento das cores dos materiais inertes e inorgânicos do jardim. A casa de fresco ao gosto clássico e com pintura de tom beringela levantou-se como orientação para servir de cenário principal entre os canteiros que iria trabalhar, adicionando espécies ornamentais que continuassem os tons fortes de roxo e beringela. Assim, os exemplares dispostos em cada lado do jardim, animam a atenção do espectador que se apercebe, por consequência, do mote do tom principal daquele cenário densamente verde com fortes alusões roxas a partir da folhagem da Cordyline australis “Pink Passion” e da Stromanthe sanguinea “Triostar”, de um lado, e, por oposição, do outro lado do jardim, a página inferior das folhas da Ctenanthe setosa, que, pelo anoitecer, literalmente se fecham e exibem a mesma coloração arroxeada.
No terraço superior, o resumo da cor roxa e beringela das espécies escolhidas cumpriu com o efeito de luz cromático que se revelou importante juntar na paisagem e, como complemento, a eleição de espécies cuja folhagem, embora verde, trouxesse recortes distintos que se sobrepõem às formas das folhas das plantas já existentes.
O Heptapleurum actinophylla assume essa função e o uso do Nephrolepis biserrata, plantado no solo (tal como no seu habitat natural e não sob a forma suspensa como é comummente apresentado), farão o contraste pretendido. Nota ainda para o enriquecimento do interesse no elenco de espécies deste jardim com a presença de duas Arecáceas pouco comuns no paisagismo nacional; Arenga engleri e Syagrus weiddliana serão seguramente motivo de excitação aos entusiastas e doutos em botânica. Este jardim é claramente merecedor de exemplares raros que aqui encontram um cenário privilegiado para serem admirados.
No terraço inferior, a cor do revestimento cerâmico da piscina e dos dois cadeirões ordenou um retoque subtil mas essencial para reforçar a beleza deste recanto. Preferi dispor de forma pautada exemplares de Ensete ventricosum “Maurellii”, cujas frondes vigorosas no futuro lançarão temperamento com o seu característico vigor colorido alaranjado. Aquecem os tons frios verde-azulados dos azulejos da piscina.
O remate discreto que as delicadas e elegantes folhas do Syagrus concedem reforça o protagonismo que faltava em torno do elemento água. São notas dispersas pelo jardim carregadas de graça que imprimem movimento e cativam a atenção.
Talvez tenha sido dos mais exigentes trabalhos onde participei pela demanda de estudo e trabalho prévio na decisão final das espécies. Foi um dos poucos momentos, da minha autoria, em que a pintura do jardim se sobrepôs como característica principal na intervenção. Um trabalho que ordenou seriedade nos conhecimentos de estética acima do simples exercício de jardinagem, fundamental para que fosse honrado o insigne nível do jardim.
O jardim
A extensão da área ajardinada é assinalável e prolonga-se em comprimento de tal forma que permite atravessar três níveis diferentes, onde três terraços distintos cumprem funções variadas. O primeiro acolhe a zona de refeições, o segundo, a piscina e espaço dedicado ao lazer, e, no terceiro, o clássico relvado tem uma função essencial pois amplifica com mestria a vista de todo o jardim a partir da casa. No topo, um elegantíssimo pavilhão remata, como nos contos fantasiosos, a origem de um mágico e por conseguinte encantado recanto, algo escondido ou intencionalmente velado para que se descubra, provocando, assim, mais e inesperadas sensações. As cores carregadas de carácter asseguram a discrição que se exige dos cânones da elegância; branco-puro no mobiliário, beringela a revestir as paredes da fachada e o verde-água de dois cadeirões como ponto forte da nossa atenção. Equilíbrio e sobriedade em apenas três tons num poderoso cenário de jardim. Contemporâneo e intemporal, o envelhecimento do jardim assim o reconfirma, conservando atuais o seu design, estilo e elenco de espécies eleitas.
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