Revista Jardins

Eunice Maia, o rosto por trás da Maria Granel

Eunice Maia, cofundadora da mercearia Maria Granel

 

No combate ao desperdício, os pequenos gestos contam.

 

Eunice Maia, cofundadora da mercearia Maria Granel, mostra-nos como é possível mudar o nosso estilo de vida com pequenos gestos.

 

O que a motivou a criar a Maria Granel?

A ideia foi do meu marido que detetou uma necessidade do mercado em 2013. Foi a Maria Granel a inspirar a minha vida e não o contrário. Eu venho de longas gerações de lavradores, gente que sempre encontrou na terra o seu sustento e que sempre a respeitou. Apesar destas raízes rurais, a partir de determinada altura fui para um contexto urbano e acabei por enveredar por um paradigma verdadeiramente consumista. Desconectei-me das minhas raízes, apesar de ter um pai que, sem saber, foi uma grande inspiração como ativista ambiental.

Foi ao construir o seu conceito que fomos confrontados com dados e com o problema do desperdício alimentar cuja dimensão eu não conhecia. Tendo uma mercearia e estando no retalho alimentar, percebi que fazemos parte do problema, mas também por isso temos responsabilidade de contribuir para uma solução. O que acontece agora é que procuramos fazer a diferença em termos de negócio, mas também na vida isso acabou por me despertar. A Maria Granel, como mercearia de bairro e loja de proximidade, acabou por nos religar às origens. Foi uma maneira de, estando na cidade, regressar à terra.

Lembro-me que o primeiro contacto consciente com essa realidade foi ter percebido, ao olhar para o meu contentor de resíduos, que mais de metade era resíduos orgânicos, entre os quais, restos de comida, parte ainda em bom estado.

Outra motivação foram as pessoas com quem me cruzei: a Ana Pêgo (bióloga marinha que alerta para o impacto do plástico descartável nos ecossistemas, autora de Plasticus maritimus) e a Bea Johnson, que me fez refletir muito e inspirou o conceito de bring your own container (traga o seu próprio recipiente).

 

@ Daniela Sousa

 

Qual é o impacto das embalagens?

Parece paradoxal, mas quando falamos de embalagens, estas também asseguram a sustentabilidade, na medida em que, em alguns casos, só elas é que garantem segurança alimentar. Quando são excessivas ou desnecessárias, falamos de insustentabilidade. O granel permite que, reutilizando frascos, tupperwares ou sacos de pano, possamos recusar uma embalagem descartável desnecessária. Fazendo-o, estamos a evitar que estas embalagens, eventualmente não tendo o descarte correto (atenção que a reciclagem tem de acontecer, mas não pode ser a única solução porque estamos a atuar simplesmente no sintoma e não a combater a doença), tenham como destino o aterro. Ao pensarem nas quantidades exatas dos alimentos que vão precisar, as pessoas ainda estão a combater o desperdício alimentar.

 

O DESPERDÍCIO EM NÚMEROS

 

931 Milhões de toneladas, dos quais:
61% agregados familiares
26% serviços alimentares
13%retalho

8 a 10% da emissão de gases com efeito de estufa

Dados UNEP, referentes a 2019 e à escala global

1,9 milhões de toneladas por ano
184 kg por pessoa
2/3 da produção anual

Dados INE 2020, referentes a Portugal

 

Os produtos mantêm as boas condições para consumo?

No nosso caso, estamos a falar de mercearia seca. Temos de cumprir uma regulação que é extremamente restritiva do ponto de vista do granel alimentar, portanto, nem tudo é possível vender a granel. Estamos também a falar de dispensadores estanques e herméticos e de princípios, regras e boas práticas de segurança e higiene alimentar. E os produtos, por serem mercearia seca, têm uma durabilidade significativamente longa.

 

Leia também:

Os guardiões do Parque Terra Nostra

 

Qual é a importância de consumir alimentos biológicos?

Correndo o risco de ser redutora, os alimentos biológicos são alimentos produzidos sem recurso a pesticidas de síntese. Falamos de práticas agrícolas comprometidas com a riqueza, conservação e regeneração do solo, com o impacto nos recursos hídricos, com o ritmo da natureza. Práticas preocupadas com o impacto ambiental, mas também com respeito pelos agricultores.

É um dos nossos critérios de escolha dos produtos e a própria loja é certificada.

 

@ Daniela Sousa

 

No início, qual foi a reação das pessoas a esta forma reinventada de comprar?

Foi extraordinário, mas duro também. Tínhamos insónias porque não sabíamos qual ia ser a aceitação, mas a verdade é que as pessoas aderiram. Depois, houve algo profundamente mágico que foi perceber que as pessoas não só iam à loja e começavam a reutilizar frascos e sacos, como faziam questão de partilhar que o estavam a fazer. Como se aquele gesto contribuísse para uma causa maior. Acho que isso determinou o nosso sucesso.

 

Nota uma evolução na maneira de pensar e agir da população?

Completamente. Sobretudo a partir de 2018 houve uma autêntica viragem. A verdade é que (e é a prova de que a ação individual não chega) seja através de diretivas europeias, seja pela influência da comunicação social que passou a insistir mais nestas temáticas, houve um despertar. Lembro-me de um momento emblemático, uma edição da National Geographic que tinha Planet or Plastic? na capa e um iceberg que na verdade era um saco de plástico. A partir daí, quer do ponto de vista do mercado, quer da sociedade, acelerou a mudança.

 

@ Duarte Rato

 

O que é o “Programa Z(h)ero”?

É um programa educativo ambiental. Trabalhamos com empresas e escolas. Ajudamos a perceber qual é o desperdício global que a instituição está a gerar. A partir desse diagnóstico definimos um plano de ação para reduzir o desperdício, que inclui acompanhamento e formação junto de todos os setores da escola, mas sobretudo os serviços alimentares (cantina, bar) – tal como acontece nas nossas casas, a maior parte do desperdício tem origem nos serviços alimentares. O plano é implementado e, no final, regressamos para fazer a avaliação da redução do desperdício.

 

Para quando a expansão da Maria Granel para fora de Lisboa?

Temos muitos pedidos de franchising e um dossier pronto desde o primeiro ano. O que acontece é que é fácil replicar móveis e dispensadores, mas é muito difícil encontrar quem entenda e viva o que está para além da loja. Gostávamos que acontecesse, mas é um formato que, do ponto de vista da logística e sustentabilidade do negócio, é muito desafiante. Num mundo de grandes supermercados, em que o principal argumento é o preço baixo, e numa altura de explosão do custo de vida, torna-se muito difícil uma empresa pequena sobreviver.

Nós temos uma rede de lojas parceiras em que revendemos produtos e é uma forma de sair de Lisboa.

 

@ Duarte Rato

 

Quais as três dicas essenciais para reduzir o desperdício alimentar?

Se conseguirmos e em função do contexto e do que faz sentido para cada pessoa:

Planeamento | Fazer uma auditoria rigorosa ao que temos em casa antes de ir às compras. Às vezes fazemos a lista de compras sem ir ver o que lá está. Basicamente é fazer uma lista do que temos e planificar as refeições da semana em função do que existe. Numa ótica criativa, é inverter a lógica de fazer as compras com aquilo que gostávamos de cozinhar, para perceber o que é que podemos fazer com aquilo que já temos.

Criatividade | Experimentar técnicas de confeção que aproveitem ao máximo os alimentos. Olhamos para os talos e as ramas como partes menos nobres, mas a rama da cenoura é deliciosa e podemos usá-la crua nas saladas que ficam com sabor a salsa, e a rama do alho-francês salteada ou no forno fica uma delícia. Pensar nas sobras e tentar incorporar em sopa, quiche ou omeletes. Ter a mentalidade de aproveitar e reutilizar.

Inspire-se com as receitas da rúbrica “Nada se perde, tudo se cozinha”.

Acondicionamento | Adotar formas de conservação e acondicionamento que garantam maior durabilidade dos produtos. Estamos a falar de gestos simples como envolver [tudo o que é folha verde] num pano húmido e colocar dentro de um recipiente fechado. O mesmo com as cenouras, basta colocá-las num recipiente fechado e submersas em água, tendo o cuidado de renovar a água. Aliás, há uma crónica do Miguel Esteves Cardoso só sobre a sabedoria dos panos no frigorífico.

 

Que conselhos dá para reduzir a pegada ecológica na hora de ir às compras?

Dar preferência ao granel reutilizando os recipientes, ao biológico e à produção local. Em termos de quantidades, tentar ir mais vezes às compras. Parece em contraciclo, mas ajuda-nos a desperdiçar menos. Exigir melhor informação para perceber de onde vêm as coisas, quem fez e como fez.

 

Pequenos gestos podem fazer a diferença?

Acredito mesmo nisso. Nós precisamos de uma mudança sistémica, dos grandes players, das diretivas europeias e do governo a mexer-se, mas muitas vezes são os pequenos gestos que, ao serem amplamente replicados, acabam por fazer pressão sobre os outros níveis e desencadeiam a ação. Este impulso para a ação é muito poderoso.

 

Leia também:

CineEco – Festival Internacional de Cinema Ambiental da Serra da Estrela

 

Gostou deste artigo? Veja este e outros artigos na nossa Revista, no canal da Jardins no Youtube ou nas redes sociais FacebookInstagram e Pinterest.

Exit mobile version