Território com quatro das mais notáveis serras portuguesas, dois planaltos e os maravilhosos vales de dois grandes rios peninsulares, esta paisagem de ocupação humana milenar e difícil moldou comunidades, criando estreitos laços entre pessoas, animais e paisagem.
“Os territórios que constituem o Parque Nacional da Peneda-Gerês encontram-se pelo seu valor natural, pela singularidade e diversidade dos seus ambientes, pelo vigor das formas de relevo e pelo carácter das suas paisagens, entre aqueles que sempre ocuparam um lugar de destaque no imaginário dos portugueses. Espaço de peculiaridades botânicas e zoológicas, de carvalhais e destacados afloramentos graníticos, o ‘Gêres’ tornou-se ao longo do tempo um local de peregrinação de todos aqueles que, atraídos pelo carácter único deste espaço natural, para aí convergirem em busca de afastamento e de experiências marcantes (…) De facto, o Parque Nacional encontra-se entre os territórios do nosso país onde se efetuam mais observações biológicas e ecológicas e paleoecológicas.”*
A diversidade do Gerês
Território com quatro das mais notáveis serras portuguesas (Peneda, Soajo, Amarela e Gerês), dois planaltos (Castro Laboreiro e Mourela/Barroso) e os maravilhosos vales de dois grandes rios peninsulares (Lima e Cávado), esta paisagem de ocupação humana milenar e difícil moldou comunidades, criando estreitos laços entre pessoas, animais, rios, vales e penhascos, no meio dos quais se foram construindo
aldeias, algumas delas com as características de vivências comunitárias onde se pratica ainda, por exemplo, a vezeira, que consiste em partilhar, à vez, a guarda do gado – cabras e vacas que são deixadas em quase liberdade entre montes e vales têm de ser recolhidas e protegidas durante a noite dos possíveis ataques de lobos e para isso existe um sistema de rotatividade entre os donos do gado para realizar este trabalho de recolha dos seus animais, recorrendo a interessantes chamamentos e sonoridades e, muitas vezes, pernoitando em grutas encaixadas entre rochas.
Não é fácil esta vida serrana e por isso mesmo a percentagem de emigração e o abandono das terras tem sido muito elevado ao longo dos anos. Para quem vai de fora e ama a Natureza, o silêncio e a força tranquilizante da paisagem, toda esta envolvência tem um cunho romântico, poético e inspirador. Para quem lá vive o ano inteiro, a realidade é bem diferente.
Quem chega a este local, como eu fiz em junho por duas semanas, sente-se abençoado pela água das cascatas, em cada bosque coberto de fetos e de musgos, de líquenes e de árvores centenárias. Foi um privilégio ter realizado dois retiros de plantas medicinais na aldeia de Ermida. Localizada nas faldas da serra do Gerês, a cerca de 550 metros de altitude, abraçada pelo rio Cávado numa vertente exposta a sul, esta aldeia apresenta-se, orgulhosamente, como uma aldeia serrana, de costumes e práticas comunitárias que vão perdurando ao longo de gerações. A sua comunidade ocupa-se essencialmente da agropastorícia e da silvicultura, atividades que dependem fortemente dos recursos dos terrenos baldios, geridos pelos compartes.
É sobretudo conhecida pelos trilhos de pastores e currais da serra, pelos miradouros, cascatas e lagoas naturais.
Os trilhos e a vegetação
Foi isso que fizemos durante duas semanas, caminhar por trilhos de pastores entre frondosos bosques autóctones de carvalhais, compostos
essencialmente de carvalho alvarinho (Quercus ruber), árvore que melhor representa o parque, existindo mesmo perto da aldeia, no trilho da
cascata do Arado, um imponente conjunto destas árvores centenárias. Sobre elas podemos ler vários extratos no livro de Miguel Dantas da Câmara Árvores do Parque Nacional da Peneda-Gerês: “Há também muitos carvalhos de muito grande altura que devem de estar nascidos do princípio do mundo, por ser muito grossos e altos e nehuã espingarda matará as aves que se pouzam na sua crôa” (in Memórias Geographicas e Históricas da Província de Entre Douro e Minho, 1736).
Sobre estes carvalhos pode ler-se ainda “Os carvalhos, principalmente os mais velhos, volumosos, harmoniosamente retorcidos, com copas grandiosas, atraem biodiversidade, desde a base do tronco, até às múltiplas extremidades dos ramos frondosos. Depois de mortos, tombados no solo, continuam a cumprir um papel essencial para a manutenção da vida nos bosques”. Além de impressionantes Quercus, existem ainda importantíssimas manchas de teixos (Taxus baccata), considerados os grandes anciãos da serra e a mais valiosa população existente em Portugal. Encontramos também azevinhos (Illex aquifolium), medronheiros (Arbutus unedo), loureiros (Laurus nobilis), bétulas (Betula celtibérica), que respondem pelo nome de vidoeiro, cerejeiras bravas (Prunnus avium), salgueiros (Salix sp), áceres, que aqui são conhecidos pelo nome de padreiros ou bordos (Acer pseudoplatanus) e que, no outono, tal como as faias (Fagus silvatica), os sanguinhos-de-água (Frangula alnus) conhecido nestes territórios por zangarinho ou sangrinho, e os castanheiros (Castanea sativa), se incendeiam (metaforicamente) e oferecem ao olhar e às objetivas dos fotógrafos imagens que não deixam ninguém indiferente.
Às árvores prometo voltar num próximo artigo mais detalhado e acompanhado de imagens, já com notas outonais. Por agora ficam as pinceladas verdes e frescas de algumas cascatas, lagoas, libélulas e herbáceas que acompanham ribeiros saltitantes e se penduram nas margens, perfurando o granito para ali surgirem resilientes e silenciosas, comtemplando as águias lá no alto e as águas que por elas passam eternizando o tempo, moldando as rochas, arrastando troncos e ramos, depositando folhas nas margens, contornando a dureza da pedra até a tornar macia e redonda, cumprindo aqui literalmente o ditado “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Não gosto da palavra bater nem acho que seja esse o fenómeno que aqui observámos, o que aqui se contempla é uma dança milenar entre os ossos e o sangue da terra. Uma dança por vezes harmoniosa, por vezes estrondosamente poderosa que nos embriaga e estremece porque sabemos que somos feitos também desses ossos e dessas águas. Estas nascentes que por aqui abundam e ainda não secaram, estas fontes que nos nutrem e que brotam do umbigo da terra alimentam a fome do mundo, fazem brotar violetas e cavalinhas entre penhascos, mantêm vivos sabugueiros, freixos e ulmeiros.
Estes rios que correm em nós abraçam o mundo, acariciam o corpo da terra, cercam as ilhas que somos, apertam o cerco, moldam gargantas de onde a voz e as lágrimas se soltam em enxurradas e dolorosos gritos de alerta: água, água, água… aqui tão perto, o futuro com apenas um
fio sussurrante que escorre entre os musgos e escasseia, escasseia, escasseia.
* Árvores do Parque Nacional da Peneda-Gerês, de Miguel Dantas da Câmara
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