E o trautear continua… Ecoa agora pelos jardins deste solar onde as camélias dominam num jogo de esconde-esconde pelos labirínticos caminhos de buxo.
Afinal é o trautear de uma doce marchinha de Carnaval que inocentemente nos remete para uma viagem no tempo… E, subitamente, recuamos até ao Brasil de oitocentos, onde curiosamente também crescia esta delicada flor de inverno…
Recuamos então para contar uma história onde os jardineiros eram escravos fugidos que cuidavam de camélias para oferecer a Isabel, a princesa Redentora…
Como tudo começou
E a história começa com um português emigrado no Brasil. Chamava-se José de Seixas Magalhães e era ainda uma criança quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1844.
Seguiu o caminho habitual da “vida comercial” e subiu, subiu, subiu… Fundou a primeira fábrica de malas do império do Brasil movida a vapor, que lhe valeu o apelido de “Seixas das Malas”.
Depressa ficou rico, tão rico que, em 1878, resolveu comprar uma vastidão de terras num local que havia de ficar conhecido como Leblon, hoje um conhecido bairro chique carioca, mas que na altura era apenas uma chácara desabitada de 270 hectares.
No alto do morro, construiu a sua casa e tornou realidade a sua paixão…
Mandou fazer uma vasta plantação de camélias. Mas quem cuidaria delas? Como homem de fortes convicções, num país na altura dominado ainda pelo flagelo da escravatura, lembrou-se de albergar e esconder escravos fugidos das fazendas vizinhas.
A sua chácara ficou então conhecida como o Quilombo do Leblon.
E quem melhor para ajudar a cuidar destas delicadas flores que as mãos sofridas e calejadas dos negros fugidos à chibata do senhor! Aquela vastidão de terra seria suficiente para esconder os escravos.
O Seixas encontrou o esconderijo ideal! Uma caverna no alto do morro, onde mandou construir um complicado sistema de passagens ocultas pela frondosa vegetação.
As suas amizades influentes valeram-lhe a enorme reputação e prestígio que alcançou e rapidamente o Quilombo do Leblon chegou aos ouvidos de Isabel, a princesa de convicções abolicionistas. Também ela tinha por hábito proteger escravos fugidos!
Segundo alguns relatos, no dia 4 de maio de 1888, estavam a almoçar no Palácio Imperial de Petrópolis 14 escravos fugidos das fazendas vizinhas. Chegaram a ser mais de 1000 os escravos diretamente sob a sua proteção!
Isabel, princesa das camélias
A princesa encantou-se pelas alvas camélias cuidadas pelos negros marcados a ferros, cujas almas sofridas davam um significado especial àquelas magníficas flores.
E os escravos chegavam cada vez em maior número ao Quilombo do Leblon… Todos sabiam da sua existência, mas ninguém se atrevia a entrar lá, pois a poderosa mão de Isabel protegia-os, também com a conivência do seu pai, o imperador D. Pedro II.
Caricato episódio ficou conhecido quando vários abolicionistas vinham de uma festa de anos do Seixas gritando vivas aos escravos fugidos pelo morro abaixo!
Uma afronta para os escravocratas como o ministro barão de Cotegipe, que pediu medidas imediatas ao imperador. – “A que horas foi isso?”, perguntou D. Pedro II. – “Meia-noite, majestade!”, respondeu o barão. Mas o imperador depressa exclamou – “Tão tarde, tão tarde assim, ninguém ouviu!”.
Como cortesia do Seixas, eram enviados farfalhudos ramos para o Paço Isabel para enfeitar o gabinete da princesa. Isabel lembrou-se então de enfeitar o seu vestido com as camélias do Seixas e apareceu em público. Uma afronta para a sociedade da altura!
Aquelas camélias estavam ligadas aos abolicionistas! E foi então que a flor singela ou dobrada, parecida com uma rosa, se tornou um símbolo subversivo, abolicionista, o símbolo do fim anunciado da escravatura.
A famosa “batalha das flores”
A atrevida princesa lembrou-se então de promover uma passeata que ficou conhecida como “batalha de flores”, onde ela e a família participavam para angariar dinheiro para comprar a alforria de escravos. Era uma festa!
A família imperial ia numa carruagem ladeada por tocadores de bombos, onde a princesa lançava camélias para a população que curiosa vinha assistir ao cortejo e contribuía com o tilintar de algumas moedas.
E o fim anunciado chegou com a Lei Áurea, no dia 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, enquanto regente, que libertou da escravidão milhares de pessoas.
A moda das camélias na lapela
A moda das camélias pegou! Quem as usava na lapela ou quem as plantava no seu jardim era defensor dos valores mais altos da dignidade humana.
A princesa mandou plantar dezenas nos jardins do Palácio Imperial de Petrópolis. As quintas dos arredores seguiram o exemplo e a serrana Petrópolis ficou conhecida como a “cidade das camélias”.
A 15 de novembro de 1889, é proclamada a República e a família imperial parte exilada para Portugal.
A princesa Isabel posteriormente parte para a “gaiola dourada” do Castelo d’Eu, em França, propriedade do marido.
O Seixas cai em ruína e regressa no final do séc. XIX, a Portugal, onde morre pouco tempo depois.
A sua plantação de camélias é vendida em hasta pública para pagar as muitas dívidas e o tempo encarrega-se de apagar da memória o significado daquelas flores, arrancadas pela raiz em nome do progresso e do avanço da cidade do Rio de Janeiro.
A 14 de novembro de 1921, morre a “princesa das camélias”. Os seus restos mortais regressam ao Brasil em 1953, mas só em 1971 é transladada para a Catedral de Petrópolis, para junto dos seus pais.
Finalmente descansou na “cidade das camélias”!
E o trautear da velhinha canção com açúcar regressa. Memórias de uma história de amor, memórias de camélias num país tropical, quem sabe das camélias de Isabel… – “Vem, jardineira! Vem, meu amor! Não fiques triste que este mundo todo é teu. Tu és muito mais bonita que a camélia que morreu.”
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