Aromáticas e Medicinais

Do chão à chávena: Elixires com histórias que curam

açores

 

Abaixo de Estórias de uma herança cultural. Na terra de vulcões adormecidos, no meio do Atlântico Nordeste, brotam águas especiais…

 

Sou de uma geração privilegiada por guardar memórias de mezinhas para a cura de várias maleitas que os meus avós tinham “à mão de semear”. Estes remédios e “chás” caseiros de ervas medicinais milagrosas são parte da nossa memória coletiva. Contudo, até há pouco tempo esbatiam-se da História.

Com agrado vejo as gerações futuras a valorizar e respeitar o remanescente deste conhecimento. Se, por um lado, é importante reter este património imaterial por ser parte da nossa identidade cultural, por outro, é um potencial reservatório para descobrir novos compostos ou processos. Acredito que as infusões medicinais que perduraram durante séculos devem ter algum fundamento de base e penso que podemos beneficiar do seu estudo através de uma abordagem lógica e científica.

 

Vista sobre o vale das Furnas no romper da aurora com o vapor das Caldeiras a envolver o vale

 

A recolha de plantas selvagens ou o seu cultivo para utilizações terapêuticas em medicina natural tradicional está registada desde os primórdios da civilização e terá perdurado em locais onde o acesso à medicina moderna tardou. Os Açores não são exceção, pelo contrário. A fragmentação geográfica do território e o isolamento insular preservou no tempo estas memórias. Se a orogenia das ilhas, localização e idade diminuem a disponibilidade de recursos vegetais nativos, tal é compensado pela heterogeneidade cultural original dos primeiros povoadores oriundos não só de Portugal mas também de outras regiões europeias, nomeadamente da Flandres. Esta diversidade cultural inicial data do século XV e foi alimentada com novas influências internacionais com o passar do tempo, não tivessem sido os Açores a porta de entrada para a Europa durante anos. Reflete-se nos diferentes saberes e na escolha de diferentes plantas para os mesmos fins. Do Corvo a Santa Maria, surgem diferentes variações deste receituário popular.

Por exemplo, o uso de plantas da família das mentas para maleitas digestivas não é necessariamente consensual no arquipélago, o poejo a planta preferida no grupo oriental enquanto, nas ilhas do grupo central, a nêveda toma dianteira. O acesso a um leque de especiarias diversificado que chega da Ásia e das Índias, mas também das Américas, potenciado pela novidade das plantas trazidas destas origens exóticas que se adaptaram rapidamente ao solo e clima açoriano (por exemplo, o araçazeiro), em conjunto com a flora nativa, resultaram numa miríade de combinações para o receituário medicinal tradicional açoriano. Pode-se dizer que a diversidade cultural compensou a baixa diversidade biológica em termos de flora nativa disponível à data.

É, contudo, nas Furnas, São Miguel, que se atinge o nível mais elevado de complexidade deste receituário. Conjugam-se fatores que levam à criação do que penso ser um valor singular inigualável em termos de herança e identidade cultural. Além do uso de plantas nativas, exóticas e especiarias neste povoado, a água escolhida para a preparação das infusões não é apenas um excipiente, mas sim um ingrediente ativo. O isolamento aguçou o engenho e os furnenses foram os primeiros a testemunhar que não há uma água igual a outra. Pelo menos desde o século XVIII que os habitantes locais utilizam as várias águas minerais naturais que jorram tranquilamente lado a lado para diversos fins.

 

O icónico “chá roxo” ou chá verde termal

 

Chá verde termal preparado com a água quente da nascente minero-termal do Padre José, Furnas

 

Entre os usos que perduram, talvez o mais conhecido seja o icónico “chá roxo” ou, mais corretamente, o chá verde termal feito diretamente com a água da nascente do Padre José. Sem dúvida que a reação única estabelecida entre os minerais da água e os antioxidantes do chá verde produzido na ilha dão razão ao ditado japonês de que “a água é que faz o chá”. Este chá lilás vibrante com peculiar sabor é utilizado não só como auxiliar da digestão mas também como suplemento para combater anemias e como cura de ressacas. Estudos atuais em curso tentam perceber os mecanismos do efeito deste chá na degradação do álcool.

 

Saiba tudo sobre o chá verde.

 

Mezinha para curar constipações

 

Colheita da água da nascente minero-termal da Água Santa, Caldeiras das Furnas, São Miguel

 

No campo fumarólico da freguesia, a nascente da Água Santa oferece sem pressa de débito uma água minero-termal cristalina, alcalina. Outrora, pela altura da gripe espanhola, foi misturada com mel e aguardente vínica e utilizada pelos locais para prevenir a devastação causada por este surto pandémico. Segundo reza a história, os resultados desta mezinha terão sido tão extraordinários que a sua fama alastrou e povo de todo o lado veio buscar a dita milagrosa.

Uma constante em versos e canções tradicionais, conhecida por curar tanto gripes como constipações. A adição de pau de canela enriqueceu a receita, tornando-a quase uma sobremesa ou elixir para aconchegar do frio no inverno. O poder antimicrobiano tanto da canela como do mel, aliado aos minerais da água, justificam a sua eficiência na cura de constipações. A aguardente, adicionada à infusão quente, evapora e inunda de aromas as vias respiratórias, funcionando como descongestionante.

 

Infusão furnense para controlar o colesterol

 

Ambas inflorescências eram secas e utilizadas para preparar a infusão medicinal do receituário do Sr. Manuel da Luz.

 

Vasto terá sido o receituário de mezinhas termais furnenses, infelizmente muitas perderam-se no tempo, outras permanecem na memória oral partilhada entre familiares e amigos. A receita que se segue foi-me dada pela minha amiga Cidália Costa, que conviveu com o Sr. Manuel da Luz, um curioso tanto das plantas medicinais como das águas locais. Ele e a mulher eram habituais recolectores de plantas silvestres colhendo, entre outras, flor de sabugueiro e flor de queiró. Uma das suas mezinhas consistia na adição destas plantas secas a Água Azeda a ferver.

A infusão obtida desta água gasocarbónica era utilizada para controlar o colesterol. Atualmente, a nível internacional existem vários estudos em curso para perceber de que forma os componentes da flor de sabugueiro e/ou da queiró influenciam o metabolismo tanto do colesterol como da diabetes. Os escoceses consideram a queiró uma planta mágica, e o chá escocês tradicional é produzido através da mistura destas flores com chá preto. À frente do seu tempo, sem dúvida.

Para mim, enquanto pessoa de ciência, a magia destas receitas está no equilíbrio entre o respeito pela Natureza, enraizado num conhecimento empírico ancestral, e a sabedoria popular empírica, que resulta em elixires agradáveis e eficazes que perduraram até aos dias de hoje. O que parece simples e lógico à luz do conhecimento atual retém um quê misterioso, fruto da ousadia do simples uso de elementos naturais por instinto ou crença em outrem.

Leia ainda “Xaropes naturais para combater gripes e constipações”

 

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