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Hélio Pires, o historiador alcobacense que planta árvores

A Terra tudo é sem o Homem. O Homem nada é sem a Terra. Mas e a Terra depois do Homem?

Viajámos até Alcobaça para conhecer a história de uma porção de terra que pode voltar a almejar ser bosque. Algo somente possível graças à ação de Hélio Pires, historiador e escritor decidido a regenerar um terreno familiar, com espécies que fazem parte da nossa história vegetal autóctone. Um legado que ficará além do seu tempo, saldando a conta do que a Natureza lhe tem dado.

É quase irresistível chamá-lo homem que planta árvores e escrever um artigo com essa premissa. Parece uma história de uma terra distante, saída de um livro ou documentário, mas está a acontecer aqui e é, na realidade, uma ação ao alcance de todos os que tenham terra ou apenas vontade de plantar, para regenerar.

Numa paisagem que foi sempre recortada pela água que seguia o seu curso, por entre montes altos e baixos, é necessário recuar quatro séculos, quando o coberto vegetal era predominantemente dominado por carvalhos, “entre outras espécies, em maior ou menor número, como o sobreiro, o zambujeiro e, em certos recantos, o loureiro, o salgueiro, o choupo, o freixo, o medronheiro, etc.” (Maduro, 2010). Este é o retrato vegetal de Alcobaça até ao século XVIII, altura em que “as matas sofreram uma desflorestação galopante”, considerando-se até um “holocausto” do património vegetal, uma consequência nomeadamente das crescentes necessidades de produção de azeite e cereais para alimento, assim como de madeira para a Marinha e a construção civil.

É com base no conhecimento do que brotava da terra que, desde 2016, Hélio norteia o plantio das árvores neste retângulo de 1000 m2. A motivação para fazê-lo é o fruto de várias circunstâncias: consciencialização ecológica, presença de vários carvalhos que resistiram ao tempo e de um terreno que está na família há várias gerações. O terreno, muito maior em tempos, com a passagem das gerações e a divisão entre herdeiros, foi-se fraturando, tanto no tamanho como naquilo que era inseminado na terra. Haviam também sido sepultadas várias cadelas, o que importava respeitar. Parentes doutra espécie transladadas para debaixo da figueira, impulsionadas pelo domínio das silvas que pouca margem deixavam.

Talvez não seja por acaso! Afinal esta é uma árvore que, por entre vários simbolismos, se encontra associada à imortalidade, de uma morte meramente terrena neste caso. Recorda-se de, em miúdo, passear entre as vinhas enquanto o avô cuidava do terreno. Contudo, o distanciamento progressivo da família para com a terra levou a que as silvas, que atingiam vários metros de altura, tomassem conta do espaço. Tão densas que impediam os carvalhos de cumprir a missão de crescer até ao céu, fazendo-os tombar.

Por isto e por aqui se iniciou a recuperação, abrindo-se corredores por entre as silvas para serem achatadas com peso − de um escadote − e, por fim, queimadas secção a secção. As cinzas que disto resultaram, a par de algum composto que vai sendo gerado por pequenas intervenções na horta vizinha e das alfarrobeiras, plantadas por serem árvores leguminosas que, no futuro, agirão como fertilizante natural, foram os únicos suplementos para o solo.

A vontade de operar esta mudança surgiu antes do saber, como é costume. E o que sabe aprendeu sozinho, com os escritos e pela via da experiência e observação, como qualquer bom jardineiro. Quando percebeu que dali nasceria um bosque de espécies nativas, o primeiro passo foi identificá-las, entender quais as mais adequadas à região, terreno e, dentro do mesmo, qual o melhor canto para cada uma delas. Das coisas que a experiência lhe tem ensinado, destaca que os carvalhos transplantados com bolota têm mais hipóteses de sobreviver à transplantação, isto sem se incomodar com os porquês das plantas.

As árvores

Atualmente, pelas diferentes dimensões que assumem, seja pela idade ou velocidade de crescimento, a mancha vegetal ainda não é óbvia. Apesar disso, contabilizam-se cerca de cem árvores, de 12 espécies. Mais de metade são carvalhos-cerquinho (Quercus faginea); dois carvalhos-alvarinho (Quercus robur); cinco azevinhos (Ilex aquifolium); 12 medronheiros (Arbutus unedo); seis pilriteiros (Crataegus monogyna); dois teixos (Taxus baccata); um pinheiro-manso (Pinus pinea); um choupo-negro (Populus nigra); sete loureiros (Laurus nobilis); duas alfarrobeiras (Ceratonia siliqua); nove zelhas (Acer monspessulanum), um sobreiro (Quercus suber). Uma configuração semelhante à do passado e que destoa dos campos agrícolas circundantes. As zelhas, a título de curiosidade e preocupação, apesar de serem nativas, tiveram de vir dos nossos vizinhos espanhóis.

Decidiu que, à exceção dos medronheiros, não iria ter árvores fruteiras e que tudo o que fosse ali plantado não seria para si nem para consumo. Recordando-se que parte da sua fonte de rendimento é escrever livros, que não existem sem as árvores − nomeadamente os eucaliptos: “Achei que tinha de devolver qualquer coisa à Natureza, como retribuição, com árvores que não valorizamos porque não dão fruto ou não crescem com a rapidez de um retorno imediato. É a minha moeda − afirma, sem esperar mais em troca”.

Na ação de plantio, tal como na Natureza, o que é aparentemente aleatório também tem lógica, nomeadamente as necessidades das plantas que vingarão. Nos limites, estão árvores que resistem à seca, como os medronheiros, os carvalhos-cerquinhos, as zelhas e as alfarrobeiras. Os azevinhos e os teixos têm de estar mais resguardados dentro do bosque. No verão, faz uma parede de canas para controlar o sol e criar sombra para um jovem teixo ainda exposto a sul.

O azevinho e o teixo, enquanto árvores protegidas, por aparecerem cada vez menos em estado selvagem, fazem parte deste ecossistema porque o terreno e a exposição do mesmo assim o permite. Alguns exemplares de carvalhos surgem espontaneamente, outros propaga a partir das bolotas e há aqueles que, quando se apercebe que nasceram numa relva que há de ser cortada impiedosamente, remove para introduzir no bosque.

A história do teixo

Preocupa-lhe fazer depender a existência de uma espécie à utilidade que o Homem decide que ela tem. Recuperou o exemplo do teixo, a sua espécie favorita, para falar desta situação. Trata-se de uma espécie ameaçada em Portugal pela ação humana e por não ter uma utilidade prática no curto prazo. Cresce lentamente, a sua composição é quase integralmente venenosa, e o fruto surge em pequenas quantidades. A semente também é venenosa, mas passa clemente pelo sistema digestivo dos pássaros, deixando-os voar para cumprirem o seu papel disseminador. Apesar de ser uma espécie “praticamente imortal” pelo seu modus operandi: ao crescer, os seus ramos tornam-se uma espécie de tentáculos fecundos que, quando regressam ao chão, cravam-no com raízes, gerando novas árvores. À medida que o tronco original apodrece, vão surgindo muitas novas árvores. Um ciclo perpétuo se “não existir violência”. Além de eterna, é, na prática, uma árvore que, contrariamente a muitas outras, “tem a capacidade de se mover”, caminhando através destes ramos emprenhadores.

Toda a árvore tem História, sempre melhor contada por um historiador, que partilhou connosco sobre ter sido a flexibilidade do teixo a originar o corte para a produção de arcos de flecha. O arco longo inglês, usado na Guerra dos Cem Anos, era tradicionalmente daqui. Estes arcos não se faziam com um ramo, sendo necessárias árvores com alguma idade. O exemplar fóssil mais antigo identificado na Europa tem 15 milhões de anos. O teixo vivo mais antigo, por seu turno, acredita-se que esteja na Escócia, com cerca de 3000 anos.

“A floresta é vida. Retém humidade, preserva a fertilidade do solo, abriga muitos seres. Isso é floresta, não são as linhas de madeira na vertical para corte passados poucos anos. Queria que o bosque, apesar da pouca dimensão, fosse parte da floresta a sério, diversa, rica, nativa e para ser naturalmente”, diz fascinado com esta inteligente forma de vida.

A única ajuda que dá, por perceber que a sua parte na Natureza só vai até certo ponto, é regar no primeiro ano de vida, salvaguardar as mais jovens em período de seca. Não quer que nada dependa dele, apenas que tudo siga o seu curso, como a água: “Eu só dou os primeiros passos. Plantar uma árvore não pode ser uma questão de gratificação imediata. Sei que não vou viver o suficiente para as ver crescer até à idade adulta”. Como não tem espaço para milhares de carvalhos neste terreno, começou a assumir uma função que não tem de ser exclusiva dos esquilos ou pássaros, espalhando bolotas fecundas pela serra nos seus passeios de bicicleta e em caminhadas, por vezes com amigas. Procurando disseminar uma espécie endémica daquela zona e que, no século XVIII, começou a decair.

Carvalho, a árvore dos heróis

Curiosamente, a bolota dos carvalhos serviu de alimento aos primeiros habitantes de regiões onde esta era a espécie predominante, algo que não surpreende dada a configuração da nossa flora. Agora sabemos que esta bolota é rica em nutrientes, que tem quase todos os aminoácidos e que os gregos atribuíam capacidades heroicas às propriedades da mesma. Esta árvore, além da bolota, tem a capacidade de produzir bugalho, um sistema de defesa que mimetiza uma granada na forma, variando ligeiramente na cor, consoante a agressão que está a sofrer e necessita expelir.

O regresso da fauna

A fauna, sempre em simbiose com a flora, também reage a esta mudança na paisagem vegetal, regressando cada vez com mais confiança e menos discrição. Os grilos cantam, as aranhas tecem as suas teias e os gaios deixam, premeditadamente, penas azuis como sinal de que ali estiveram. Há pouco tempo este historiador jardineiro avistou, pela primeira vez, um esquilo, possivelmente em busca das melhores bolotas da região. E, porque a Natureza não para de responder quando é ajudada, este ano apareceu uma colmeia de forma espontânea no subsolo.

Lança um repto final muito claro, dirigido a quem partilha desta vontade de sanar a terra: “Se tiverem árvores nativas, é preservar. Se existir espaço para mais, é diversificar. Consiste sempre num trabalho de pesquisa para perceber o que se adequa ao terreno. E não achar que reflorestar é só plantar árvores. É preciso saber qual a espécie e onde. Nem todas querem a mesma quantidade de água ou resistem da mesma forma à seca”. Depois desta viagem por uma história que se escreve na terra, com árvores, despedimo-nos do terreno caminhando sobre um mulch de folhas outonal, o que nos dá a certeza de que o solo já não precisa de ajuda e de uma ação que nos transcenderá o tempo de vida, para uma fauna e flora que hão de povoar estas terras.

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