Conheça estas duas especiarias que foram sempre valorizadas e que, acreditava-se, eram exemplos de plantas encontradas no Paraíso.
Quando consultamos as listas elaboradas por especieiros medievais e renascentistas, encontramos, além das especiarias que hoje bem conhecemos, produtos de origem animal, mineral e vegetal que, entretanto, caíram em desuso, têm aplicações muito restritas ou são de identificação incerta.
O mais invulgar destes produtos foi, provavelmente, a múmia, que correspondia a múmias egípcias moídas utilizadas em medicina, como remédio universal para quase todas as patologias (panaceia).
O uso de múmias pulverizadas continuou até ao século XX, não em medicina, mas na pintura artística, onde se utilizou como pigmento de cor castanha (mummy brown). Encontramos exemplos deste castanho em algumas obras do movimento oitocentista pré-rafaelita, como, por exemplo, em The Last Sleep of Arthur in Avalon, de Edward Burne-Jones, quadro pintado entre 1881 e 1898.
Este pigmento manteve-se disponível até à década de 1960, quando o fabricante londrino esgotou o seu stock de múmias.
A ideia de Paraíso
De acordo com os mais notáveis geógrafos medievais, o Paraíso Terrestre localizava-se algures no Oriente e este facto contribuiu para reforçar, na mente dos europeus, uma imagem idealizada desta vasta região, em especial da enigmática Índia, zona que se acreditava ser fértil em especiarias e sumptuosa em ouro e pedras preciosas.
As lendas medievais eram reforçadas por relatos de viajantes que regressaram do Oriente com histórias maravilhosas. O exemplo mais célebre foi, porventura, Marco Polo (c.1254-1324) que, enquanto estava preso em Génova, descreveu as suas aventuras ao companheiro de cárcere, Rusticiano de Pisa, que, por sua vez, as registou no Livro das Maravilhas do Mundo.
Estas crenças medievais também se baseavam em histórias bíblicas, canónicas ou apócrifas, que se referiam aos esplendores dos reinos do Oriente, como o Reino de Sabá, do qual partiu a rainha que ofereceu incontáveis tesouros ao rei Salomão, ou os próprios Reis Magos, que, com as suas oferendas de incenso, ouro e mirra, contribuíram para reforçar a crença de um Oriente resplandecente.
Especiarias de origem vegetal
As especiarias de origem vegetal foram sempre as mais valorizadas e, entre estas, duas tinham um elevadíssimo prestígio: o cravinho (Syzygium aromaticum) e a noz-moscada (Myristica fragrans). Acreditava-se que eram exemplos de plantas encontradas no Paraíso, do qual Adão e Eva haviam sido expulsos.
Um teólogo flamengo que viveu no século XIII, Tomás de Cantimpré (1201-1272), escreveu várias biografias de santos e legou-nos um curioso relato sobre um austero bispo que, tendo recebido uma magnífica taça de prata repleta com noz-moscada, recusou a taça, mas aceitou a noz-moscada porque, segundo ele, “eram frutos do Oriente”, ou seja, do Paraíso.
A noz-moscada
A noz-moscada corresponde à semente de uma árvore de médio porte (até 15 metros de altura), dioica, ou seja, existem plantas com flores femininas e outras com flores masculinas (como ocorre com a palmeira-tamareira e o quivi). A moscadeira é nativa das ilhas Banda (na atual Indonésia) e estas ilhas foram, até ao século XIX, o único local onde se encontravam plantações comerciais de noz-moscada.
Atualmente, um grande produtor mundial é a ilha de Grenada, nas Caraíbas. No passado, as Caraíbas foram denominadas Índias Ocidentais, aludindo este nome à crença de Cristóvão Colombo de que havia chegado à Índia, quando, de facto, encontrou o Novo Mundo.
A semente de noz-moscada (tal como a salsa, o endro e outras plantas aromáticas) possui um composto denominado miristicina, que, em dose elevada, produz alucinações. Contudo, como as doses necessárias para tais efeitos são elevadas, os poderes psicoativos da noz-moscada nunca se manifestam no regular consumo desta especiaria porque a ingestão de miristicina é reduzida, além de haver humanos que mostram pouca sensibilidade aos efeitos deste composto. A miristicina também mostrou, em ensaios laboratoriais, ter efeito anticancerígeno.
A semente da noz-moscada está rodeada por um arilo (invólucro acessório da semente) de cor escarlate que, quando está seco fica cor de laranja e apresenta propriedades organoléticas (cor, aroma, sabor) semelhantes às da noz-moscada.
Este arilo seco é, também ele, uma especiaria denominada macis, mácide ou maça. Quando a moscadeira habitava as florestas primárias das quais era originária, o arilo destinava-se a atrair as aves dispersoras de sementes, que eram muito sensíveis à cor escarlate.
A ave dispersora engolia o arilo e, também, a noz-moscada, mas esta última não era destruída porque se encontrava protegida por um tegumento esclerificado (semelhante a um caroço) que a protegia dos sucos digestivos do animal. O arilo era uma recompensa que a planta concedia à ave por esta agir como dispersora de sementes (a noz-moscada saía ilesa, juntamente com matéria fecal).
O cravinho
Corresponde ao botão floral de uma árvore de médio porte (até 12 metros), nativa de apenas cinco ilhas do arquipélago das Molucas (na atual Indonésia), das quais Ternate e Tidore eram as mais conhecidas. Estas pequenas ilhas tinham, necessariamente, uma produção muito limitada de cravinho, o que fazia com que esta especiaria fosse rara e com elevado preço.
O botão floral do cravinho deve ser colhido enquanto ainda está fechado, porque, uma vez aberto, perde facilmente as substâncias aromáticas que caracterizam a sua fragrância única. O principal composto aromático do cravinho é o eugenol, que apresenta propriedades bactericidas, antivirais e é também usado como anestésico para o alívio das dores de dentes.
Aliás, no passado, os consultórios de odontologia tinham um aroma característico a cravinho, devido ao uso generalizado de óleo de cravo pelos dentistas. O eugenol combinado com óxido de zinco era utilizado nos compostos temporários que se inseriam nos dentes durante o processo de restauro de um dente cariado.
As propriedades antissépticas e refrescantes do óleo de cravo já eram utilizadas na China, durante a Dinastia Han (c.206 a.C.-220 d.C.), onde era de rigueur mascar cravinho para manter um hálito fresco, antes de se dirigir ao imperador. Etimologicamente, o substantivo eugenol deriva do antigo nome que era atribuído ao cravinho: Eugenia caryophyllata.
A produção de cravinho
Alguns autores defendem que o cravinho terá chegado à Europa no início do primeiro milénio da Era Cristã ou mesmo antes, podendo ser esta a planta oriental (ocaryophyllon) referida por Plínio, o Ancião (23-79) no livro XX, capítulo 15, da sua obra maior: Naturalis Historia (História Natural).
Nesta obra, o autor compilou muito do conhecimento existente na época sobre o mundo natural, antes de falecer precocemente, enquanto tentava ajudar aqueles que fugiam da erupção catastrófica do monte Vesúvio, que soterrou Pompeia e Herculano, no verão do ano 79.
Embora o cravinho possa ter sido conhecido dos gregos e romanos, foi apenas durante a Baixa Idade Média (dos séculos XI ao XV) que a disponibilidade de cravinho na Europa se tornou mais frequente. Além da Indonésia, existem plantações de cravinho noutras regiões, nomeadamente no arquipélago de Zanzibar que, desde 1964, se juntou ao território de Tanganica, para criarem um novo país: a Tanzânia.
As plantações de Zanzibar eram muito conhecidas e existem numerosas referências literárias à aragem fragrante que provinha destas ilhas e era sentida por viajantes que cruzavam o oceano junto a Zanzibar.
Tabaco Kretek
Na Indonésia fuma-se tabaco Kretek – o nome é uma onomatopeia para o som das folhas de tabaco quando estas são queimadas –, que corresponde a uma mistura de tabaco e botões florais de cravinho moídos. Neste arquipélago, os botões de cravinho são, também, utilizados por artesãos, para a génese de múltiplos objetos decorativos, nomeadamente, caixas, pendentes e mesmo pequenas embarcações, sendo que estas últimas são emblemáticas deste tipo de ofício.
Alguns pomanders tradicionais são feitos com laranja e cravinho espetado em seu redor, permitindo que a fragrância desta especiaria se misture com os óleos essenciais de laranja, existentes nas bolsas secretoras do epicarpo, e aromatizem o ambiente.
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