A ideia de fazer um jardim medieval na Quinta das Lágrimas nasceu perto de Florença, em Certaldo Alto.
Fui chamada para partilhar ideias e filosofar num congresso sobre o restauro do jardim da casa onde viveu Bocaccio (1313-1375).
Apresentaram-se as grandes obras literárias do final da Idade Média descrevendo jardins.
“Na Divina Comédia de Dante, os últimos atos e encontros para a purificação do mundo dos danados para o mundo dos bem aventurados inclui o encontro com a dama amada, Beatriz, e o trânsito do purgatório para o Paraíso, faz-se através do arquétipo bíblico do jardim do Éden, o que revela a importância que o jardim ocupa na visão do mundo de Dante Aligheri.”
A origem
Os nomes de Orfeu e Euridice, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, na ficção dos jardins, lembraram-me Pedro e Inês, num jardim, junto a uma fonte.
Ao contrário das outras histórias de amor da Idade Média, nesta nossa história, não só os personagens são reais como se conhecem os locais por onde andaram.
Foi Camões, no século XVI, que deu à fonte o nome de Lágrimas, como se toda a natureza ali jorrasse para sempre lágrimas com a morte de Inês.
E como tudo o que vem de Camões, a ideia durou, passando o nome Lágrimas da Fonte para a Quinta das Lágrimas e 650 anos depois, lá estão os jardins a perpetuarem a história.
“Vede que fresca fonte rega as flores
Que lágrimas são a água e o nome amores.”
Com estas duas estrofes dos Lusíadas se fez um jardim na Quinta das Lágrimas. A nascente da fonte dos amores continua viva, ressuscitámos as palavras de Camões, regando flores com a mesma água da mesma Fonte dos Amores.
Parecia que tudo estava preparado para receber um jardim medieval: o solo, a água, os muros virados a sul a proteger um espaço irregular e ameno.
A sombra das árvores e até as pedras octogonais de um lago antigo, com repuxo ao centro, igual à de uma iluminura do sec. XIV.
A obra
Neste projecto nada se fez ao acaso. Para restaurar um jardim com uma carga histórica como este, mais de 18 meses de pesquisa precederam a obra.
É sabido que os desenhos e soluções para um jardim histórico estão escondidos no próprio jardim e que vão aparecendo à medida que se estuda e se procura.
Seguimos este método marcado por dois momentos de grande entusiasmo. Ao observar uma pintura da Fonte da Quinta das Lágrimas assinada em 1858 por Cristino da Silva, a fonte e o lago no quadro pareciam iguais mas ao contrário da realidade, estavam muito bem iluminados por manchas de luz que atravessavam as árvores da mata.
Seria possível voltar a fazer passar a luz?
Atualmente o que víamos acima da fonte era uma mancha contínua e escura que não deixava passar a sol.
Ao lado da fonte, na pintura, aparecia um arco e um banco contínuo em curva, que enquadrava a cena romântica em que um casal se encontra e parece sussurrar, envolto em meio mistério.
Limpeza da vegetação
Ninguém se lembrava no entanto de um arco junto à fonte. Julgou-se ser fantasia do pintor, mas a minha intuição pedia uma limpeza da vegetação exuberante que devido à abundância de água dominou tudo durante décadas.
Fez-se, e apareceu o arco, o banco e o muro curvo e a mata voltou a deixar passar a luz do sol!
A encosta ao fundo da qual sai a nascente da Quinta das Lágrimas é muito íngreme e foi armada em meados do século XVII com muros de pedra solta que se foram desagregando.
A limpeza da mata pôs estas paredes meio destruídas a nu e o restauro no terreno começou com uma ação urgente de reparação dos muros.
Após uma drenagem, o restauro foi feito com todo o rigor, usando apenas areia e cal como argamassa.
A Fonte e o Canal da Rainha Santa na Quinta das Lágrimas
O outro momento alto foi a descoberta de um documento, datado de 1326, da Rainha Santa.
A Rainha Santa Isabel pede aos Frades de Sta. Cruz de Coimbra, para construir um canal que levasse a água das nascentes para o seu convento de Sta. Clara, situado a 500 m dali.
“Item pede a dita senhora Raynha aterra hu nascem essas duas fontes e por que possa levar esta água livremente ao dito seu mosteiro de St.a Clarae hua braça de terra a redor das ditas fontes e d ancho per o cano per o qual ha de hir a dita agua ao dito mosteiro de St.a Clara hum covado de terra de cada parte e juntado com o ditto cano com todollos seus direitos, per que se possa servir e adubar e de mais cumprir hir vir e estar […] desta seja contente a dita senhora Raynha…”.
A Fonte dos Amores
A Rainha Santa queria, para além da água, a área à volta da fonte e do cano: para hir, vir e estar. O sítio de estar passou a chamar-se, ainda antes de Inês e Pedro, Fonte dos Amores.
Esta informação trouxe um valor incalculável ao local onde tentávamos recriar um ambiente da Idade Média. Há mais de 650 anos que a Fonte dos Amores e o cano estavam ali autênticos.
A água passava em direção ao Convento como no tempo da Rainha Santa. Situação única de preservação de um património frágil; de cada lado do canal, lá estava um caminho para “hir e vir” e um muro com canteiro para adubar, tal como a Rainha S. Isabel pedira.
O mais subtil e encantador era, evidentemente, o termo “estar”, palavra tão portuguesa sem tradução em francês ou inglês.
O que queria a rainha dizer com estar? Uma sala de estar, o bem estar, o estar à janela. O estar parece indicar momentos de lazer em que se pára, se conversa, se contempla.
Na essência desta palavra estar se encontrava assim já a ideia de lazer num local fresco para sossegar ao ar livre; junto de uma fonte nascia a ideia maravilhosamente inútil de um jardim para se estar!
Reparações urgentes jardins inadiáveis
No século XIX com a plantação de um Ficus macrophylla junto à Fonte dos Amores foram necessárias algumas reparações.
O crescimento desta árvore foi imenso que as suas raízes se meteram por dentro do velho cano e desfizeram-lhe as paredes.
Foi então feita uma poda radicular da árvore junto ao canal para reduzir a destruição da peça mais antiga do jardim: o canal mandado construir pela Rainha S. Isabel.
Em simultâneo com o trabalho de pesquisa e identificação destas ações imediatas, os alunos de História de Arte de Jardins II do ISA executaram o levantamento de peças construídas, de vegetação, do sistema hidráulico, a recolha fotográfica e a compilação de dados histórico.
O documento de 1326
Depois da minha descoberta do documento de 1326 tornou-se óbvio que tudo deveria girar à volta do canal dos amores e dos muros que definiam o “côvado de terra” e que estavam integralmente tapados por heras e agapantos.
Ao longo do canal definiu-se um relvado e nele foram dispostos canteiros de pedra rematados com vime conforme as imagens das iluminuras.
As pedras da fonte antiga foram repostas e a água do canal alimenta-a em permanência.
O ponto mais complicado do projeto foi integrar no espaço uma tenda que há muito servia para festas e casamentos. A opção foi revesti-la com treliças de rosas e criar-lhe um acesso em pérgola de madeira, que imita uma pintada no sec. XIV para o livro de Bocaccio.
Normalmente, os jardins medievais eram sempre cercados de muros. O da Quinta das Lágrimas tinha uma parte murada, tendo que se rematar as partes nascente e poente com treliças de rosas.
Assim, as treliças acabam por fechar integralmente o jardim e fazem ainda de espaldar aos bancos de relva que aparecem em ilustrações da época.
Para o estudo das plantas medievais, inspirei-me noutros jardins e introduzi à agricultura biológica. Assim, o plano de plantação misturou plantas de horta e jardim.
As plantas são regadas com a água que enche uma cisterna enterrada e toda a parafernália de bombas e tubos foi montada para uma rede de rega disfarçada e alimentada pela fonte dos amores e pelo seu canal.
A preservação do Património
Entra aqui a discussão teórica de relevo que decorre das cartas internacionais assinadas, em conjunto por cerca de 100 países, para a preservação do património.
Na Carta de Florença um restauro não permite a utilização de elementos novos em contínuo com os antigos.
Uma recuperação repõe podendo melhorar a condição sem novos elementos visíveis, enquanto uma reabilitação abre a possibilidade de introduzir tecnologias como a rega automática, a drenagem enterrada, a iluminação escamoteada etc.
Numa área sem qualquer registo ou vestígio de jardim pode-se interpretar, recriar um ambiente mas, não se pode a isso chamar restauro.
Assim, o que foi feito na Quinta das Lágrimas foi manter inalterados os vestígios existentes, recuperar os muros da mata e interpretar junto ao cano dos amores o ambiente de um jardim medieval.
“A escolha do termo interpretação é uma escolha criativa. (…) Tal como os músicos, os arquitectos paisagistas poderiam assumir o papel de intérpretes de fontes históricas.”
Os jardins são um código de leitura de cada momento da humanidade
Sabemos que os jardins expressam, na sua arte de criar espaços, vivências de cada cultura. Constituem-se como um código de leitura de cada momento da humanidade.
Constatam-se semelhanças reais entre a insegurança vivida no início deste século XXI e a que se viveu na Idade Média.
Do terrorismo às brutais alterações climáticas, migrações clandestinas e ao emprego não garantido, a insegurança do quotidiano leva, como levou na Idade Média, à procura de refúgios pacíficos e protegidos.
Os jardins privados de hoje são o reflexo da mesma procura de sossego que se verificou na Idade Média.
A mistura que fazem do útil e do agradável com legumes e flores plantados nos mesmos canteiros, com a agricultura a voltar a ser biológica e com os novos interesses contemporâneos.
“O jardim medieval de hoje orienta-se para novos valores: o agradavelmente útil, a ecologia, a saúde, a redescoberta dos sentidos, a sustentabilidade económica baseada no turismo, a gastronomia, a venda de plantas. A pesquisa histórica virá mais tarde alimentar os projetos que se fundamentam sobre estes novos valores.”
Fotos: Jardins
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